Heróis salvam vidas e vilões matam inocentes, certo? Errado. Pelo menos em alguns dos jogos eletrônicos mais acessados, vencedor é quem mais mata. Nas telas de computador, vencem aqueles que mais cometes assassinatos, ganham mais pontos os que atropelam e roubam. Mocinhos ficaram para trás e personagens frios, com armas definidas para agir em cada situação, se tornaram a referência para nossas crianças e adolescentes. Quem eliminar mais oponentes é o campeão.

Esta lógica corriqueira em games hardcore, que envolvem rankings e deixam o competidor completamente absorto em um mundo paralelo, se materializou em uma das maiores tragédias envolvendo ataques as escolas do país. Luiz Henrique de Castro e Guilherme Taucci Monteiro, que mataram oito pessoas na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), na última quarta-feira (13), usaram arco-e-flecha, uma besta (um tipo de arco e flecha que dispara na horizontal), machado, além de revólver, armas utilizadas com frequência o ambiente de jogos virtuais.

Dois dias depois, no outro lado do mundo, outro massacre também foi relacionado a games. O atirador declarado fascista que matou ao menos 49 pessoas em uma mesquita de Christchurch, em Nova Zelândia, escreveu que o jogo eletrônico Fortnite o treinou para ser assassino e para fazer uma dança junto aos cadáveres de suas vítimas. No game, febre de crianças e adolescentes brasileiros, o jogador devem atirar nos outros até sobreviver sozinho. O vencedor é o que mata todos os que estiverem pela frente. E não basta matar; tem que dançar em cima do corpo.

Os fatos reacendem a discussão sobre a influência dos games em crimes que reproduzem na vida real as mesmas cenas de horror. Coordenador do Grupo de Estudos de Alcoolismo e Outras Dependências Para crianças e Adolescentes, o professor de Medicina da Universidade Federal Fluminense Jairo Werner tem entre seus pacientes muitos dependentes de jogos eletrônicos e esclarece o tema em entrevista exclusiva para a Agência Nossa.

Imagem de Fortnite/ Epic Games

Agência NossaO massacre na escola de Suzano (e agora outro em mesquista na Nova Zelândia), assim como vários outros ocorridos no Brasil e Estados Unidos, muitos deles praticados por jovens atiradores que costumavam jogar games violentos, desperta preocupação nas autoridades de todo o mundo. Jogos de computador de caráter violento podem alimentar a violência em crianças e jovens?

Jairo Werner: Sim, mas não isoladamente, tem que haver uma conjuntura de fatores, nada em saúde mental tem uma única causa. Os games, de fato, podem influenciar o indivíduo, se transformando em uma forma de expressão para uma situação vivida e alimentando um sentimento negativo, mas não podem ser vistos como fator isolado nunca. O problema, no entanto, tem merecido atenção dos responsáveis não só no Brasil e nos Estados Unidos, como mundo todo. Educadores e pais discutem uma forma de minimizar o problema em países como China, Japão e Suécia.

O uso, pelos atiradores em Suzano, das mesmas armas usadas em jogos violentos, como a besta, arco-e-flecha, e machado, além de revólver,  é uma evidência de que o hábito excessivo de jogar esses games violentos pode estimular ações igualmente violentas?

Pode influenciar sim, porque, em alguns casos, há a ilusão de que os problemas são resolvidos através dos mesmos mecanismos usados nos jogos, principalmente quando a pessoa apresenta uma desarmonia entre habilidades tecnológicas e sociais. Mocinhas e vilões estão presentes na ficção, o cinema está repleto de justiceiro; nos contos de fada, há sempre um vilão capaz de atitudes crudelíssimas e, no entanto, as crianças não saem por aí pensando em fazer maldades com seus colegas. O problema que atinge grande parte dos jovens atualmente é a pobreza de experiências, este é o perigo. Uma criança ou adolescente que não desenvolve habilidades sociais pode apresentar incapacidade de se comportar no mundo real e acaba transportando a realidade virtual para a vida normal.

Até bem pouco tempo, o herói era o que salvava vidas, e nestes jogos de hoje, os vencedores são os que matam, e muitas vezes com crueldade. O que está por trás disso? O que a indústria de games pretende com essa inversão?

A lógica do olho por olho é a mesma dos filmes de Hollywood, há um herói que representa o bem, mas é um justiceiro que age motivado por vingança O que faz diferença neste caso, repito, é a pobreza de experiências aliada a uma vida familiar problemática. Pessoas que não contam com bons exemplos na família, que foram, de alguma forma, maltratadas e humilhadas, podem realmente desejar assumir o papel do vingador. Estamos muito suscetíveis a encarnar este perfil, porque vivenciamos de forma demasiada a violência no cotidiano.

O vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, opositores na política, têm a mesma opinião sobre a forte influência dos jogos violentos na vida real. Ambos demonstraram preocupação em dois episódios distintos de atiradores em escolas.  Recentemente, as autoridades tiveram que intervir para proibir um jogo que estimulava estupro. O que as autoridades poderiam fazer para inibir, por exemplo, jogos que incentivam mortes cruéis, com machados, mortes de bebês, atropelamento de idosos?

Acredito que temos que trabalhar para que nos próprios jogos haja um tipo de advertência ou contraponto, alertando sobre o conteúdo violento do jogo ou mesmo sugerindo que a criança ou adolescente opte por um tipo de jogo com um desfecho mais solidário. Às autoridades, cabe regulamentar a liberação do jogo de acordo com a idade, inserindo advertência sobre o caráter agressivo do game, além de investir em pesquisas e campanhas educativas sobre o tema.

Por outro lado, defensores da indústria de games dizem que a grande maioria dos jovens que joga não têm comportamento violento. Mas e a agressividade, a dependência? Pode-se dizer que há outros efeitos nocivos a adolescentes e crianças, ou mesmo adultos que jogam muito?

Jogar por muitas horas seguidas pode causar outros distúrbios, que não exatamente um comportamento violento, como a falta de sociabilidade, obesidade e ansiedade. Há casos que o jovem fica tão irritado por não jogar e destrói o próprio quarto.

Qual o mecanismo que os fabricantes de jogos eletrônicos usam para deixar os games tão dependentes e, não raramente, violentos?

Na verdade, estes jogos estimulam a adesão ao jogo, despertando o desejo para competir, com recursos que atinjam o sucesso, estratégia para que o jovem não pare de julgar. A preocupação dos fabricantes é manter o gamer fiel e, para isso, usam uma combinação de estética, cores, e ambiente estimulantes.