A música de Fernanda Abreu e Fausto Fawcett já definia o Rio como purgatório (da beleza e) do caos bem antes da cidade receber a classificação de mais vulnerável a mudanças climáticas da América Latina. A sensação térmica acima dos 50 graus em meio a sucessivas ondas de calor definitivamente antecipam as projeções antes feitas para o final da década.
O pior é que nos pontos historicamente mais quentes, como Bangu, nem há medição de temperatura. A estação do bairro foi desativada em 2004 e especialistas acreditam que ali a sensação pode passar dos 60 graus em dias de calor extremo.
Diante do aumento de 51% de casos de doenças causadas pelo calor na semana em que os cariocas sentiram na pele quase 59 graus, em meados de novembro, a Prefeitura do Rio anunciou plano de contingência. Foram 1.121 notificações em diagnósticos de mal-estar e fadiga; pressão baixa; síncope; colapso e edema. A Vila Kennedy registrou o maior número de ocorrências da enfermidade (274), seguido de Madureira (56) e Rocha Miranda (45) – os três bairros são da Zona Norte.
Estudos publicados na década passada já alertavam para o aumento crescente da temperatura, do nível do mar, períodos de estiagem prolongados alternados com eventos extremos de precipitação e tempestades.
Tudo ou nada, bem a cara da capital do melhor e do pior do Brasil. Cidade sangue quente, cidade maravilha mutante – a letra visionária quando não se falava ainda em mudanças climáticas.
Desenvolvido pelo Centro Clima/COPPE/UFRJ, o estudo Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro, mostrou em 2016 que o Rio precisaria se preparar para ondas de calor, inundações, estiagens, deslizamentos e aumento do nível do mar.
Com mais detalhes sobre o aumento do nível do mar, Arthur Falcão mostra em sua reportagem os locais mais afetados, os prejuízos e o total de pessoas alvos em alguns locais. “As áreas mais sujeitas às inundações são as que ficam ao redor das lagoas costeiras, Lagoa Rodrigo de Freitas, Piratininga, Itaipu e as praias da Zona Sul, Botafogo e também a região da Ilha do Governador”, destaca a doutora em Oceanografia, Raquel Tostes.
Mas tem uma coisa mais profunda que o aumento do nível do mar. Enquanto eu escrevo esse texto no conforto do ar condicionado, a 200 metros da orla, onde há mais brisa, e em uma região que não costuma faltar água, a realidade que trazemos no texto de Cristiane Crelier mostra o oposto.
Se o aumento do nível do mar tem impacto tanto sobre ricos e pobres, atingindo imóveis das áreas mais nobres como a Lagoa Rodrigo e Leblon, mas também provocando inundações na Baixada Fluminense, o desabastecimento de água afeta muito mais os desfavorecidos.
As ondas de calor intensas também são bem mais inclementes nos bairros localizados em regiões menos valorizadas como Baixada, e nos lares onde não há possibilidade de pagar uma conta cara de ar condicionado. Assim como as doenças decorrentes do calor extremo impõem mais transtornos a quem não tem plano de saúde.
A situação do Rio é agravada pela ocupação desordenada em encostas e pela falta de saneamento básico nas comunidades de baixa renda. A pesquisadora recomenda que os governos adotem políticas públicas para evitar tragédias provocadas por catástrofes ambientais. A injustiça climática está aí, e ainda mais escancarada na cidade purgatório da beleza e do caos.
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