Muitas vezes questionei a destinação de verba pública para shows em cidades onde faltam saúde e educação. Um olhar mais atento, porém, me mostrou o efeito multiplicador de renda da indústria cultural na economia e no emprego, no Brasil e no mundo.

O relatório The Concerts and Live Entertainment Industry: A Significant Economic Engine, elaborado pela Oxford Economics, mostra que, em 2019, o setor nos EUA foi responsável por um impacto econômico de US$ 132,6 bilhões e 913 mil empregos, associados a uma renda do trabalho de cerca de US$ 42 bilhões. Estima-se que a arrecadação tributária desses eventos tenha totalizado cerca de US$ 9,3 bilhões a nível federal e mais US$ 8,3 bilhões a nível estadual e local.

No caso do show da Madonna, a Prefeitura do Rio é apoiadora do evento com R$ 10 milhões. A previsão é que somente a arrecadação extra de ISS devido ao espetáculo já compense o gasto, reclassificado como investimento. O super show deve movimentar na cidade 30 vezes o valor desembolsado pela Prefeitura.

O espetáculo de uma das maiores estrelas do mundo ocorre neste sábado (04) nas areias de Copacabana patrocinado principalmente pelo Itaú. O banco tem a cantora pop como a principal estrela da sua campanha pelo centenário. O show também conta com apoio da Heineken e do governo do estado do Rio e deve custar R$ 60 milhões, dos quais R$ 17 milhões devem ficar com a Madonna.

E os milhares de trabalhadores do evento, quanto recebem? Uma diária para montador de eventos no Rio, um trabalho que não costuma exigir escolaridade nem qualificação profissional, fica na faixa de R$ 70 a R$ 120, dependendo da empresa e da relação dela com o prestador de serviço.  Normalmente são trabalhos pesados, literalmente, e de muitas horas de trabalho.

Em uma situação no bairro em que moro, presenciei a triste cena da remoção do corpo de um rapaz eletrocutado quando desmontava um palco, após uma chuva. Em outra situação, um ex-garçom se queixava por não ter recebido o salário de uma semana de trabalho como montador e desmontador da estrutura de um evento na Lapa. Para piorar, ele se machucou  com a queda de uma barra de ferro sobre o pé, mas continuou indo, até o final do evento, sem ter recebido por isso quase dois meses após o serviço.

Um estudo de pesquisadoras da UFRJ e UFRRJ que investigou a precarização do trabalho no setor de eventos concluiu que é comum empresas contratantes de serviços terceirizados possuírem até 30 dias, após o evento, para remunerar suas contratadas pelos serviços prestados. Assim, somente ao fim deste processo os freelancers recebem seu pagamento.

Além disso, 77,8% dos respondentes da pesquisa afirmaram sentir falta de preparo e treinamento oferecido por parte das empresas para exercício de suas funções. A pesquisa foi motivada pela experiência profissional de uma das autoras, que atuou no setor de eventos por quatro anos. “A partir desta experiência rotineira, várias condutas inadequadas foram observadas”, diz a pesquisa.

IBGE também constatou que a informalidade é marca do setor. Mas a indústria cultural é a que mais contrata, com inegável efeito cascata sobre trabalho. Tanto que o Senado aprovou nesta semana o projeto de lei que trata de benefícios para o setor de eventos com teto de R$ 15 bilhões de renúncia fiscal até dezembro de 2026.

Nada contra o setor ser apoiado, já que retorna muitas vezes mais com renda e emprego. Mas vale a conscientização dos empresários com as condições de trabalho dos terceirizados.

Este texto integra a 6a edição de Volver! Volta que deu ruim!, a newsletter da Agência Nossa. Se inscreve aqui para receber mensalmente.

*Sabrina Lorenzi é editora-fundadora da Agência Nossa, ex-Reuters com matérias publicadas em grandes jornais e sites de notícias do Brasil e em vários veículos internacionais. Também foi editora de economia no JB e jurada do prêmio Petrobras de Jornalismo. Vencedora de seis prêmios de reportagem, denunciou crimes ambientais por empresas de petróleo e mineração.