Poucos dias antes do início das chuvas que infligem ao Rio Grande do Sul a sua maior tragédia climática, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) enviou ao governador Eduardo Leite (PSDB) um ofício com o incomum título de “Alerta ao Estado do Rio Grande do Sul e ao Governador do Estado”, seguido pelo subtítulo que dizia: “Registro para fins de tomada de conhecimento sobre alertas emitidos há várias décadas”. O documento foi entregue no último dia 26 de abril.

 calamidade que assola o RS, com 78 mortos e mais de cem desaparecidos até o momento, número que tende a crescer nos próximos dias, é uma “tragédia anunciada” na visão de Lacerda. “Não existe nada que possa ser feito para evitar o próximo evento climático extremo que vai acontecer porque estamos dentro da crise climática.”

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Se no curto prazo há pouco a fazer, no médio e longo prazo a perspectiva pode ser outra. O presidente da Agapan cita como prioridades a recomposição das Áreas de Preservação Permanente (APP), a recomposição das matas ciliares e o aumento do calado dos rios. A última medida com resultado mais rápido.

“Desassorear rios seria uma solução de forma imediata, cara e trabalhosa, mas o melhor seria a gente recompor as florestas”, defende. “Um dos grandes problemas é o assoreamento dos rios por causa de um modelo agrícola de desenvolvimento que desmata as bordas dos rios, tanto para construir casas quanto lavouras. Nossos rios estão assoreados, nossas cidades estão sendo construídas na beira dos rios, as encostas dos morros estão sendo impactadas, mesmo quando têm vegetação já tiraram as árvores grandes com raízes profundas, não é mais a mata natural.”

Ao citar os rumos para estancar a devastação ambiental que influencia diretamente na mudança climática e abre caminho para a força das águas dos rios, as divergências entre a Agapan (e outras entidades ambientalistas gaúchas) e o governo Leite se tornam evidentes. Mais que isso, explicam o ofício enviado poucos dias antes da atual tragédia causada pelas enchentes.

“O governo do Rio Grande do Sul vai na contramão da ecologia. Estamos regredindo na legislação ambiental enquanto estado que foi precursor na criação de leis ambientalistas. Outros estados que criaram a sua legislação ambiental, inclusive a nacional, se basearam no que foi criado aqui no Rio Grande do Sul”, destaca Lacerda.

A revolta remonta ao começo do primeiro mandato de Leite, em 2020, quando o governador aprovou na Assembleia Legislativa a Lei 15.434. Chamada de Novo Código Estadual do Meio Ambiente, a lei suprimiu ou flexibilizou mais de 500 artigos e incisos do Código Estadual de Meio Ambiente criado no ano 2000, afrouxando regras de proteção ambiental dos biomas Pampa e Mata Atlântica.

Em outubro de 2023, já depois da trágica enchente que devastou o Vale do Taquari, durante evento de lançamento do Plano de Governança e Conformidade Climática, a secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), Marjorie Kauffmann, chegou a dizer que o novo Código Estadual do Meio Ambiente “trouxe mais elementos para analisar” o tema das mudanças climáticas.

Governador Eduardo Leite em Santa Maria, durante a tragédia climática. Foto: Mauricio Tonetto/Secom

“Quando entra um governo com essa visão mais neoliberal e anti-ecológica, ele se baseia nas legislações de fora que estão mais permissivas do que as nossas para fragilizar e enfraquecer a nossa legislação. As que se basearam nas nossas foram criadas de uma forma mais flexível”, explica o presidente da Agapan.

No mesmo evento em outubro do ano passado, ao apresentar as ações de enfrentamento às mudanças do clima que o governo estadual entende já teriam sido realizadas, outros episódios que tiveram ampla repercussão negativa junto as entidades ambientalistas do RS chamaram a atenção. Foi o caso do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), conhecido como autolicenciamento privado, criado em dezembro de 2021 e muito criticado por afrouxar a fiscalização ambiental. A medida permite que 49 atividades econômicas, sendo 31 com alto e médio potenciais poluidores, sejam autorizadas independente do seu porte.

Quando a LAC foi aprovada pelo Consema, o Centro de Estudos Ambientais (CAE), sediado em Pelotas, declarou que o caso representou o “maior retrocesso ambiental promovido por um governo nesse colegiado”. A ONG diz que o órgão atualmente está dominado por uma aliança anti-sociedade e anti-natureza, reunindo o governo estadual e o agronegócio, a indústria e a construção civil.

Ainda no evento de lançamento do Plano de Governança e Conformidade Climática, entre as medidas listadas pelo governo estadual como ações para enfrentar a crise climática no RS esteve a participação na Conferência do Clima (COP 26), em Glasgow, e na COP 27, no Egito; a adesão ao programa Race to Zero e Race to Resilience; a criação do Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas; o incentivo a criação de Comissões Municipais sobre Mudanças Climáticas; assim como a assinatura do protocolo de intenções para a descarbonização das cadeias produtivas do RS e o Programa de Desenvolvimento da Cadeia de Hidrogênio Verde no RS, entre outras ações consideradas inócuas ou insuficientes pelas entidades ambientalistas do estado.

Recentemente, outro projeto com alto potencial de impacto ambiental colocou Leite e entidades ambientalistas em lados opostos. Trata-se da lei que flexibiliza ainda mais o Código Estadual de Meio Ambiente para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP). O objetivo é proporcionar alternativas de armazenamento de água para agricultura e pecuária, de modo a enfrentar períodos de estiagem. Leite sancionou no dia 9 de abril o projeto aprovado em março na Assembleia Legislativa.

Na ocasião da aprovação do projeto, Rodrigo Dutra, mestre em Ecologia e integrante da Coalisão pelo Pampa, avaliou que a medida é resultado da vulgarização dos conceitos de utilidade pública e interesse social. “Em geral, são exceções para obras e empreendimentos de interesse coletivo, e nos PLs entram várias atividades particulares como a irrigação e até a mineração”, disse.

Para Dutra, o pano de fundo para a discussão sobre o tema é a omissão estadual em implementar o Programa de Regularização Ambiental (PRA), previsto desde 2012 para recuperar passivos de APPs e reserva legal nos biomas Pampa e a Mata Atlântica – a Reserva Legal determina a preservação de no mínimo 20% de todo imóvel rural. Ele pontuou ainda que, segundo o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (PLANAVEG), apenas no bioma Pampa deveriam estar sendo recuperados 300 mil hectares de APPs e Reserva Legal. “Nada disso está acontecendo, e o PL prevê destruir mais APPs para barragens”, lamentou.

Também após a aprovação pela Assembleia do projeto que flexibiliza o Código Estadual de Meio Ambiente, a Agapan emitiu nota denunciando o que definiu como a “destruição ambiental” que está sendo incentivada e legalizada no estado. A entidade destacou haver muitas provas científicas sobre o impacto das atividades humanas no planeta, com enormes danos ao meio ambiente. E neste contexto de crise ambiental intensificada pelas mudanças climáticas, disse que a nova lei aprovada no RS é “antiecológica” e “irresponsável”.

OUTRO LADO

Questionado pela reportagem do Sul21 sobre as ações de enfrentamento a crise climática implementadas desde a enchente de setembro do ano passado, o governo estadual informou apenas que, neste momento, “trabalha 24 horas por dia com prioridade total no resgate e atendimento às vítimas das chuvas históricas”, com toda sua estrutura agindo de forma descentralizada e em conjunto com as forças nacionais de segurança.

“Pensando na adaptação e resiliência climática, em novembro de 2023 foi instituído o Gabinete de Crise Climática, que tem como principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima”, respondeu, em nota.

Entre as medidas em andamento citadas pelo governo Leite para enfrentar a crise climática, estão a contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil, que será instalado na Região Metropolitana de Porto Alegre e está em fase final de implementação; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal.

“O governo reforça o seu compromisso, neste momento, em garantir a vida e a segurança da população gaúcha neste momento de emergência”, afirma, sem citar nenhuma das ações defendidas pelos ambientalistas para mudar a trajetória dos futuros eventos climáticos extremos.

Em novembro do ano passado, um dia depois da Assembleia Legislativa aprovar o orçamento do governo estadual para 2024, com receitas totais de R$ 80,3 bilhões e despesas totais de R$ 83 bilhões (um déficit de R$ 2,7 bilhões), o governo Leite celebrou a fatia do orçamento de R$ 115 milhões para enfrentar os eventos climáticos no RS no ano de 2024. O governo definiu o valor previsto como um “orçamento robusto”, embora a cifra represente menos de 0,2% do orçamento total aprovado