RIO E MANAUS — Na cadeia de Roraima onde 33 presos foram assassinados no começo deste ano, a clássica cena das várias mãos para fora das celas superlotadas dá lugar a outra pior. Desta vez, as mãos só aparecem próximas ao chão e ao teto, por uma pequena fresta. De fora, não se vê rostos. De dentro, mal se tem ar.
Como medida preventiva após as chacinas, o estado de Roraima chapeou as portas, deixando frestas nas celas. Apenas o mínimo para a respirar, como descreve a autoridade responsável pelo sistema penitenciário local. Medidas paliativas foram tomadas, mas a superlotação e a calamidade continuam neste e nos outros estados onde 130 detentos morreram nos massacres ocorridos no início deste ano.
Seis meses depois, Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte registraram capacidade para 8.058 detentos, mas aprisionaram 18.011. O número de presos excede em 124% o total de vagas, segundo dados levantados por esta reportagem junto aos três estados.
Luiz Silveira/Agência CNJ
O sistema prisional de Manaus continua superlotado, apresentando 90% de presos excedentes. No interior do Estado, o índice passa a inacreditáveis 382%. Em todo o estado do Amazonas, há 3.372 vagas para 9.160 encarcerados. Em Roraima, são 1.186 vagas para 2.651 detentos, enquanto no Rio Grande do Norte, 3.500 vagas para 6.200 presos.
“Não adianta alimentar a ilusão de que são possíveis soluções de curto prazo. Nosso problema é estrutural. O que aconteceu no Norte não foi disfuncionalidade do sistema, que a gente conseguiria resolver no curto prazo. As mortes são sinais de agravamento de uma longa agonia”, diz o procurador Rogério Nascimento, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do grupo fiscalização criado para apurar os crimes nos presídios da região Norte.
Depois das rebeliões, forças-tarefas foram montadas, presos foram removidos, obras de recuperação de presídios foram iniciadas. Mas as inspeções recentes do CNJ e de outras entidades defensoras de direitos humanos revelam que a situação dos presos nestes estados continua dramática.
Luiz Silveira/Agência CNJ
Restos de comida espalhados pelo chão, goteiras, falta de energia, prédios caindo aos pedaços, presos amontoados em celas apertadas, esgoto correndo a céu aberto e um cheiro pútrido que toma conta do ambiente. Assim, o grupo de fiscalização do CNJ descreveu a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista, após as chacinas.
Sobre a Unidade de Recolhimento Provisório de Rio Branco, “a sensação era a de adentrar um enorme forno aceso para queimar lixo lentamente”, segundo relatório do conselho. A comitiva presenciou “o mau cheiro exalado dos restos de marmitas do almoço, especialmente o azedo do feijão”. Presos de crimes graves convivem com detentos por infrações mais leves. “Em um mesmo pavilhão, convivem presos experientes com presos que nunca haviam pisado em uma penitenciária antes”, relatou o grupo de trabalho do CNJ.
Falta água onde mais chove
A mesma equipe do CNJ esteve no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), onde 56 detentos foram mortos, muitos decapitados e esquartejados. Três meses depois da barbárie, a comitiva nem conseguiu entrar. Por falta de segurança, foi impedida de visitar as áreas de convivência dos presos, em abril. Na véspera, detentos e policiais se confrontaram durante revista das celas e o clima ainda era muito tenso.
Pouco depois, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Amazonas conseguiu entrar no palco da chacina. O grupo informou ter flagrado 32 presos em uma mesma cela, quando cada um desses locais possui capacidade para oito detentos. No principal complexo prisional do estado, onde chove pelo menos nove meses no ano, falta água para os cerca de mil homens que cumprem pena ou aguardam julgamento.
O CNJ questiona Parceria Público Privada (PPP) firmada com o poder público no estado do Amazonas. “Representa uma despesa milionária para a sociedade amazonense”. Segundo o CNJ, o governo do Amazonas desembolsou R$ 326,3 milhões em 2016 para cumprir o contrato com a empresa Umanizzare, para gerir cinco das 12 unidades do sistema prisional do Amazonas.
Na ocasião da apresentação do relatório, a presidente do STF e do CNJ, ministra Cármen Lúcia, comparou: “O preso do Amazonas é um dos mais caros do país. Está custando, em média, R$ 4 mil por mês, sendo que, em São Paulo, o valor é de menos de R$ 2 mil por mês”.
Em Roraima, apenas o mínimo para respirar
O diretor do Departamento do Sistema Penitenciário de Roraima, Alain Delon, disse que foi necessário colocar chapas metálicas nas celas da cadeia que foi palco de 33 mortes em janeiro porque os presos tinham acesso aos cadeados. Segundo ele, isso permitia que se soltassem e se aproximassem de detentos rivais.
Após ser indagada por esta reportagem sobre a medida, a comissão de direitos humanos da OAB foi ao local no início de julho para verificar a situação dos presos. O presidente da Comissão, Helio Abozaglo Elias, classificou a aplicação de chapas metálicas de exagerada e desumana. Mas acredita que a situação mudará em breve com a conclusão das obras que prometem mais 120 celas ao presídio.
Na mesma cadeia, as visitas aos presos foram suspensas por alguns meses após os massacres, segundo o CNJ, que constatou isso em inspeção realizada em maio. Atendimento médico e aulas também deixaram de ser fornecidos aos detentos, segundo o órgão. A OAB diz que as visitas já foram regularizadas.
“Por enquanto vamos esperar até agosto para a entrega das novas celas, o que vai melhorar a situação dos presos”, disse Elias. Na mesma linha, Delon afirmou que o controle da população carcerária deve ser obtido com o término da construção de duas prisões que devem ajudar a desafogar a lotação dos presídios de Roraima.
De acordo com o diretor, os novos presídios serão cruciais para a divisão entre presos preventivos e julgados. “A nossa atual conjuntura predial é lamentável, porque possuímos poucas unidades prisionais que são deterioradas. Com novos presídios, vamos poder ter controle total”, disse.
Projetos atrasam apesar de verba federal
O governo de Roraima afirma que já enviou projeto de ampliação de vagas ao governo federal com unidade que deverá ser construída na cidade de Rorainópolis e outra em Boa Vista.
O Ministério da Justiça listou uma série de ações desenvolvidas nos estados de Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte após as rebeliões de janeiro de 2017. Mas até o final de junho ainda não considerava os projetos de ampliação de Roraima.
Segundo o ministério, antes dos assassinatos em série, em dezembro de 2016, foram repassados recursos financeiros da ordem de R$ 44 milhões para cada um dos 25 estados, para construção de vagas, aparelhamento e contratação de serviços voltados para a segurança das instalações prisionais. Cerca de 25 mil vagas deverão ser construídas com esses recursos. O total, porém, é menos que o necessário para abrigar o número de pessoas que o País prende a cada oito meses.
Embora o governo federal tenha autorizado em dezembro passado repasses que somam R$ 1,2 bilhão para a criação de novas vagas em presídios de todo o país, apenas Alagoas, Pará e Pernambuco têm projetos em fase de análise pelo departamento penitenciário. Os demais estados, segundo Ministério da Justiça, ainda estão na etapa de elaboração da proposta ou de levantamento de custos, inclusive os estados que foram palco dos massacres no começo do ano.
Segundo Alain Delon, responsável por Roraima, as obras estão inacabadas e devem prosseguir com Fundo Penitenciário Nacional e contrapartida estadual. Além das duas, o governo estadual prepara a construção de um novo presídio. A previsão é que as obras durem de oito a nove meses, com início no segundo semestre deste ano.
Apesar do Amazonas ter três vezes mais presos além da capacidade, ainda não apresentou projeto para ampliação de vagas com recursos liberados em dezembro pelo governo federal, de R$ 32 milhões. A reportagem questionou o governo estadual sobre a fase atual do projeto, mas a secretaria responsável não respondeu até fechamento desta reportagem.
O governo do Rio Grande do Norte informou que está investindo R$ 1,9 milhão na reforma do presídio de Alcaçuz. Durante as obras, parte dos presos ficará na Penitenciária Estadual Rogério Coutinho Madruga.
Outras medidas
Entre as ações nos estados onde ocorreram os massacres de janeiro, o governo federal cita o envio de cem homens da Força Nacional para Manaus, a doação de sete furgões para transporte de presos, a criação de uma equipe multidisciplinar enviada ao Amazonas para analisar o sistema prisional e a realização de um mutirão da defensoria pública.
Para Roraima, segundo o Ministério da Justiça, foram enviados 120 homens da Força Nacional e também doados sete furgões, além de armamento e equipamentos.
No caso do Rio Grande do Norte, o Ministério da Justiça informou que foram enviados 125 integrantes da Força Nacional, além da doação de furgões, de armamento e equipamentos, da formação de equipe enviada para analisar o sistema prisional, mutirão da defensoria pública, força-tarefa para restabelecimento das rotinas no Complexo de Alcaçuz e realização de ações de assistência de saúde, ouvidoria, defensoria documentação dos presos.
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Com texto e colaboração de Sabrina Lorenzi