BARBACENA (MG) – A contribuição individual por segurados da agricultura familiar exclui cerca de 10 milhões de pessoas da Previdência Social. A resistência de especialistas e parlamentares à cobrança inicialmente prevista na reforma não é à toa: 65% dos domicílios inseridos neste regime não têm renda suficiente para cumpri-la, revelou à Agência Nossa o pesquisador Eliziário Toledo, doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB), com base em dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Atualmente, trabalhadores em regime de agricultura familiar, considerados segurados especiais, devem pagar uma parcela de 2,1% sobre a venda da produção como contrapartida da cobertura previdenciária para toda a família. O texto aprovado em maio prevê que o segurado especial deve contribuir individualmente, mas este item acabou entre os que estão sendo reavaliados para tornar a reforma mais viável. Uma versão mais enxuta da reforma está prestes a ser anunciada.
Leia a série de reportagens “Versões da Reforma da Previdência“
Dos cerca de 4 milhões de domicílios inseridos no regime de agricultura familiar, 56% não possuem ganhos para garantir a cobertura previdenciária de todos os membros da casa, o que forçaria a escolha de um deles em detrimento dos demais. Este grupo de trabalhadores possui renda média mensal de R$ 168 por pessoa. “É inviável abrir mão de quase um terço deste orçamento já apertado para contribuir com a Previdência, mesmo considerando uma alíquota mínima subsidiada de 5%. Eles terão que eleger um membro da família para ser o segurado”, afirma Toledo.
“É a mesma coisa que escolher um filho para salvar”, compara Valdineia Silva, produtora rural no município de Barbacena (MG). Ela e o marido Sebastião Silva têm dois filhos que também trabalham no campo e, com a renda atual, não podem garantir o pagamento da contribuição individual para todos.
O levantamento mede a capacidade contributiva de agricultores em diferentes cadeias de produção. Na atividade da soja, por exemplo, o percentual de domicílios na agricultura familiar que não poderá pagar a Previdência dispara para 80%.
A conta considera o valor da produção vendida menos os custos a partir de dados coletados pela Embrapa. A amostragem inclui regiões díspares que vão do Nordeste mais pobre ao Sul de pequenos agricultores mais abastados.
A renda dos Silva se aproxima do estrato de maioria mais pobre, variando radicalmente conforme a época do ano. Entre junho e setembro eles normalmente precisam vender animais para suprir gastos porque a produção de leite diminui com o clima seco. Nos meses mais fartos, a renda pode alcançar R$ 800.
“Tem mês que falta, tem mês que sobra pra gente comprar o que precisa”, conta Valdineia. Como a família planta frutas, legumes e hortaliças, além de criar galinhas e porcos, não tem muito gasto com alimentação. Mas não sobra dinheiro, por exemplo, para realizar um dos sonhos da filha Cailane, que é fazer um curso de inglês.
Leia mais: Informal, cortador de cana terá que contribuir por 25 anos
A Reforma da Previdência prevê contribuição mínima de 15 anos para o agricultor familiar ou pequeno produtor que não possui empregado — classificado como segurado especial. A idade mínima para se aposentar foi mantida em 60 anos para homens mas elevada de 55 anos para 57 anos no caso das mulheres. Para se aposentar, pode-se pensar que bastaria contribuir somente depois dos 40 anos, mas não é bem assim.
O problema que Valdinea aponta é que, deixando para contribuir apenas perto da aposentadoria, os filhos Cailane e Mateus não garantem o vínculo com a Previdência, ficando sem os benefícios, fora da cobertura de riscos, se a regra for mantida. Segundo a Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (Contag), sem contribuir desde cedo, eles podem perder a condição de segurado especial.
“Boca de roubo”
“Às vezes dá vontade de desistir. De comprar um carro e ir para São Paulo, tentar a vida na cidade. A vida no campo é muito dura”, desabafa Valdineia, emocionada ao falar da rotina pesada do filho. Ele começou a ajudar nas tarefas da roça com apenas 4 anos, assim como ela. “Tem vezes que ele vai à escola sem almoçar porque o gado fugiu, porque a cerca arrebentou e não deu tempo para comer antes de o ônibus passar”. O menino não reclama, só sorri. Ele quer ser médico para cuidar da mãe.
Enquanto Mateus parte para a escola, a filha Cailane, de 13 anos, chega. Almoça, lava a louça, arruma a cozinha. A essa altura a mãe já abateu, limpou e cozinhou a galinha, servida com arroz, feijão e salada da própria horta. Quase sete horas de trabalho e uma pausa antes de pegar no segundo turno, que vai durar o mesmo tanto de tempo, junto com marido, e, agora, com a filha.
É noite. Valdineia acende o fogo para nos servir um café. Perguntamos sobre a reforma da previdência, se ela conhece as mudanças previstas para o trabalhador do campo.
“Isso é uma boca de roubo. Eles tinham que vir até aqui acordar cedo como nós e ver o duro que é”.
Soluções para a Previdência
O governo busca saídas para equilibrar as contas do INSS e a Previdência Rural, apesar de realizar 22% dos benefícios totais, responde por apenas 2% do total da receita. A urbana, por sua vez, responde por 98% e até 2015 mostrou-se superavitária. Um problema que afeta a arrecadação é a falta de controle da contribuição realizada na venda da produção, que sequer possui um cadastro. Outro entrave são as isenções a exportadores, que poderão ser extintas com a reforma. O valor da renúncia para exportadores no ano passado foi da ordem de R$ 7,2 bilhões.
Em entrevista na ocasião em que o texto foi aprovado, em maio, o secretário da Previdência, Marcelo Caetano, afirmou que a reforma contempla o fim de isenções que afetam expressivamente a arrecadação previdenciária. Caetano defendeu na ocasião a cobrança individual por agricultor familiar, desde que subsidiada. Mas esta posição pode ser revista diante da meta de se aprovar a reforma, que sofre resistência no Congresso.
Esta reportagem também foi publicada no jornal Valor Econômico.