O comércio local e os pequenos produtores de alimentos têm enfrentado uma difícil concorrência no varejo brasileiro, afirma um estudo sobre segurança alimentar abordado pela Agência Nossa. Redes de supermercados concentram cerca de 92,9% do faturamento de alimentos, dos quais 40% apenas três grupos juntos: Carrefour, Grupo Pão de Açúcar e Grupo BIG (Walmart).
“Essa concentração representa uma concorrência difícil para os estabelecimentos comerciais locais e os pequenos produtores — que encontram dificuldades na comercialização, em função de condições desfavoráveis de negociação”, assinala o documento “Um retrato do sistema alimentar brasileiro e suas contradições”.
Redução aguda do programa de segurança alimentar provoca fome no Brasil
O trabalho, produzido pelo pesquisador de economia agrário da Unicamp Walter Belik, em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Clima e Sociedade e Ibirapitanga, destaca a perda de espaço de feiras de ruas e quitandas para grandes redes de supermercado, que passaram a focar em produtos como frutas, verduras e legumes.
Uma das consequências da concentração do setor de alimentos é a perda de vínculo entre produtor e consumidor, segundo a pesquisa. Antes, com um comércio mais pessoal característico do tradicionalismo das feiras de rua, que ainda possuem força no subúrbio, nas quitandas e em açougues locais, a relação pessoal era um agente crucial na troca comercial, diferentemente da experiência que gôndolas de supermercados oferecem aos consumidores.
Entre os fornecedores que perderam espaço, Belik destaca as Centrais Estaduais de Abastecimento (CEASAS), afetadas pela forte competição frente às grandes redes de distribuição e logística dos grupos de super e hipermercados internacionais.
A concentração das grandes redes varejistas afeta a variedade da oferta de alimentos.
“As grandes redes de supermercados dominam o varejo de alimentos e, portanto, têm um papel decisivo na definição dos produtos e alimentos que são ofertados à população”, avalia o estudo.
A partir de pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), os autores do estudo lembram que os três grandes grupos de supermercados faturaram R$ 330,4 bilhões em 2018.
O trabalho traça um panorama sobre as questões centrais do sistema alimentar brasileiro, entre hábitos, consumo e aspectos sócioeconômicos e culturais. Nele, são apontadas as consequências das desigualdades sociais no país na mesa dos brasileiros, além da qualidade da alimentação, tipos de dietas, produtividade agropecuária, aumento no consumo de alimentos ultraprocessados e impacto na saúde das famílias brasileiras.
Desenvolvedor do programa Fome Zero e Ex-Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e a Alimentação (FAO), José Graziano da Silva participou de evento de apresentação do documento, destacando a importância de políticas públicas no sistema alimentar brasileiro.
“Nós estamos perdendo aquilo que nós duramente conquistamos: a saída do mapa da fome, ter políticas nutricionais, ter um guia alimentar… e estamos perdendo essas políticas públicas. E eu tenho insistido que, no novo quadro de regime alimentar brasileiro, não basta voltar ao passado.
Lacunas invisíveis
Durante transmissão de webinário, Belik reclamou de atraso na disponibilização de dados do setor de alimentos, fundamentais para formulação de políticas para qualidade de alimentos e combate a desperdício nos lares brasileiros.
“Há o problema da falta de dados. Nossa desarticulação com os produtores de dados é muito complicada. No passado a gente tinha um controle maior sobre o que acontecia. Os dados saem muito atrasados, nós não estamos com informações sobre cadeias produtivas e hoje a gente depende das associações que vão te fornecer o dado e você não tem como conferir. Então em uma agenda de pesquisa a gente teria que criar uma estrutura de controle e checagem”, conclui.
Desigualdade à mesa
Com base em dados da Pesquisa de Orçamento Familiares (POF), do IBGE, os pesquisadores aprofundaram a análise da desigualdade na mesa dos brasileiros. De acordo com o estudo, famílias mais ricas do país gastam 165,5%, o equivalente a mais que o dobro da renda mensal das mais pobres somente em despesas alimentares.
“O sistema alimentar brasileiro não é muito diferente da sociedade brasileira. As mesmas situações que a gente observa na sociedade, na cultura e na economia a gente também observa na alimentação”, afirma Belik.
Outro ponto crucial abordado no relatório é que os hábitos alimentares do brasileiro não refletem sua pluralidade cultural e regional do que pode ser produzido e consumido. A pesquisa aponta que apenas 10 alimentos — arroz, feijão, pão francês, carne bovina, frango, banana, leite, refrigerantes, cervejas e açúcar cristal — representam 45% da dieta alimentar de Norte a Sul do país.