A comodidade de receber tudo em casa, rapidamente, a partir de um simples pedido pelo celular impulsionou uma profissão que se tornou ainda mais fundamental na pandemia. As tecnologias facilitaram a vida de fornecedor e cliente que recebe produtos em casa, mas desumanizaram o trabalho do entregador, que praticamente não tem contato com as empresas-plataformas para as quais trabalham.
Entregadores não têm suporte, por exemplo, para realizar necessidades básicas como beber água e ir ao banheiro, durante o período trabalho, entre uma entrega e outra.
“Acredito que poderia existir uma parceria com restaurantes, por exemplo, para deixar a gente ir no banheiro, a gente beber uma água. Eu acho que não seria difícil. Acho que você deve prezar pela vida de quem tá te ajudando, pela vida de quem é parceiro da sua empresa, sabe? Ainda falta muita empatia”, afirma Gabriel Lorran, 26 anos, que trabalhou por quase dois anos no iFood, Rappi e James Delivery.
Orientados por plataformas automatizadas que não consideram erros de percurso como acidentes de trânsito, por exemplo, estes trabalhadores ficam pressionados no meio das duas pontas — o cliente e o fornecedor, com poucas chances de comunicação.
Menos mãos, mais algoritmos: bancários sofrem com digitalização
“A gente vê uma fragilização bem ampla com relação a própria questão da gestão algorítmica do trabalho. É um trabalho gerido por empresas-plataformas, que não têm contato direto com os trabalhadores, que geram as regras do trabalho de forma completamente unilateral. Os trabalhadores ficam à mercê dessas regras (novas) que são dadas no dia a dia. Eles chegam a receber muitos bloqueios de ficar sem receber pedido, porque tiveram uma uma avaliação baixa ou se disponibilizaram a trabalhar pouco durante aquela semana. Então há uma insegurança muito grande por parte dos entregadores”, avalia a psicóloga Letícia Masson,
Letícia integra o grupo de pesquisa do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), qual também fazem parte o médico Renato Bonfatti e a cientista social Simone Oliveira.
Já cientista social Simone relata indignação com os relatos de indiferença das empresas com a segurança dos prestadores de serviço.
“Uma vez um amigo caiu de bicicleta e ele estava com a entrega. Me ligou e falou: ´Cara, acabei de cair aqui. Pô, eu acho que eu quebrei meu ombro´. Aí eu fui para onde ele estava e no caminho eu liguei para o suporte do aplicativo, para avisar. Na primeira ligação, fui muito mal atendido. Assim que eu liguei, uma pessoa atendeu, e ela disse que não era o setor responsável, sem nem perguntar como ele estava, mostrando muita falta de empatia, sabe? Quando eu liguei de novo, consegui falar com o setor responsável e em nenhum momento eles se preocuparam em perguntar se o rapaz estava bem. A primeira coisa que eles me perguntaram foi da entrega, e se eu conseguiria fazer a entrega”, conta Gabriel.
“Talvez o que mais tenha me afetado é esse relato das pessoas que no trabalho se acidentam. O que mais acaba preocupando elas é a entrega e o medo de serem penalizadas. Isso me lembra muito também a perspectiva do trabalho no telemarketing. Onde as pessoas, mesmo quando atendem o cliente de uma maneira adequada, acabam sendo penalizadas com avaliações negativas. Tem um relato que escutei de uma entregadora chamada Luciana que sofreu um acidente, caiu na rua, e ela caída no meio da rua só conseguia pensar na pizza que ela tinha que entregar”, observa Simone.
“Nós entregadores corremos muitos riscos na rua para entregar seu pedido na sua casa”, afirma Alexandre Machado, 23 anos, que era barman de eventos mas com a pandemia teve que parar. Ele trabalha em dois aplicativos de entrega, iFood e Uber Eats e, apesar de reconhecer a insegurança que precisa enfrentar, conta que gosta do trabalho, de ter a chance de montar seus próprios horários.
Os entregadores ouvidos pela Agência Nossa não deixam de valorizar as vagas que foram criadas por meio dos aplicativos. Afinal, os serviços de entrega ampliaram as oportunidades para milhares de trabalhadores que perderam o emprego na pandemia.
Pior sem eles
“Por mais que existam as dificuldades, eu estou satisfeito com o Uber Eats que vem dando mais oportunidades para nós do que nosso próprio país. Ela fornece ajuda tanto para a saúde, antes e durante a pandemia, como também fornece ajuda com cursos em algumas instituições. Em relação ao Uber Eats, a condição é bem tranquila e ele está ajudando muitas pessoas”, pondera o entregador Gustavo Pinho.
Mas ele reconhece a insegurança que o acompanha na jornada de trabalho.
“É um trabalho muito bom, uma forma de ganhar dinheiro rápido, mas tem seus contrapontos. Estamos sempre à deriva de qualquer coisa que possa ocorrer, como um acidente ou até mesmo um assalto. Eu mesmo já sofri um acidente, mas nada grave”, relata Gustavo Pinho, entregador de 21 anos.
O médico e pesquisador da área Renato Bonfatti acredita que a saída é a organização coletiva dos trabalhadores. “As empresas são muito poderosas, tecnicalizam ao extremo processos e quando não ganham, saem. É isso que a gente tem visto no mundo todo. Ou fazem uma concessão numa certa medida e encontram maneiras de garantir o seu lucro, garantirem as apropriações. Então, a gente acredita que o processo de coletivização é essencial”.
O documentário Trajetos e Trajetórias Invisíveis na Cidade fruto do projeto de pesquisa e extensão “Saúde e direitos dos trabalhadores em tempos de plataformas digitais: um olhar sobre a atividade”, realizado em parceria entre a ENSP/Fiocruz, a UFRJ e a UFF, aborda as dificuldades sofridas pelos trabalhadores informais de entrega e apresenta diálogos com entregadores e motoristas de aplicativos sobre o cotidiano, a saúde, a segurança e os processos de coletivização das atividades de trabalho e da organização destes trabalhadores.
Ações judiciais
O vice-presidente do Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), Gerson Cunha, diz que as condições de saúde e de trabalho dos entregadores de aplicativos são precárias e que recebe reclamações constantemente dos trabalhadores, pois sentem que há uma precarização da mão de obra, trabalhando muito e recebendo pouco. São constantemente bloqueados de maneira arbitrária.
O SindimotoSP e o Ministério Público do Trabalho decidiram ajuizar ações civis públicas na Justiça do Trabalho para a tentativa de reconhecimento do vínculo trabalhista.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) diz que a preservação de trabalhadores de aplicativos de transporte de passageiros e de entrega também é um dos focos do MPT. Entre os resultados já obtidos, um acordo judicial firmado entre o MPT-SP e a Rappi em dezembro e a liminar obtida pelo MPT-RJ em abril de 2020 contra o aplicativo de transporte de passageiros Cabify.
Em abril de 2020, o órgão já tinha publicado as decisões em caráter liminar, com abrangência nacional, decorridas de duas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP), que apontavam que as plataformas digitais iFood e Rappi devem garantir assistência financeira a trabalhadores contaminados pelo novo coronavírus (COVID-19) ou que integram o grupo de alto risco para que possam se manter em distanciamento social com recursos necessários para sua sobrevivência.
As deliberações também obrigavam as empresas a fornecer materiais de higienização a todos os entregadores de mercadorias e refeições.
A Agência Nossa procurou as empresas de aplicativos de entrega citadas nesta reportagem.
iFood adota medidas
“O iFood reitera o seu compromisso com os entregadores, parte fundamental do seu ecossistema. A empresa sempre esteve comprometida em criar diversas iniciativas para melhorar a experiência de seus parceiros entregadores, baseadas em escuta ativa, constante e transparente. Por isso, o iFood renovou a comunicação com os entregadores em abril, a fim de trazer mais clareza e transparência para a relação. Atualizamos os Termos e Condições de uso do aplicativo, deixando-os mais amigáveis para leitura e consulta. E lançamos a seção “Abrindo a Cozinha”, no Portal do Entregador, que traz informações sobre a relação entre empresa e parceiro, distribuição de pedidos e esclarece fake news. O iFood também reforçou a transparência sobre os critérios de distribuição de pedidos por meio do App do Entregador, que mostra para cada um a taxa de finalização das rotas, o detalhe da quantidade de rotas enviadas e finalizadas, o número de pedidos entregues, quantidade e teor de avaliações dos clientes.”
A companhia, que é uma das empresas que está facilitando a manutenção dos empregos em meio à pandemia da COVID-19, defende que tem oferecido recursos, como máscara, álcool gel, plano de vantagens em saúde e seguro de acidentes pessoais e de vida, para preservar o bem-estar e
A companhia, que é uma das empresas que está facilitando a manutenção dos empregos em meio à pandemia da COVID-19, defende que tem oferecido recursos, como máscara, álcool gel, plano de vantagens em saúde e seguro de acidentes pessoais e de vida, para preservar o bem-estar e a segurança de seus entregadores durante a crise sanitária que o mundo atravessa.
“Desde o início da pandemia, o iFood entrega kits com máscara e álcool gel para os entregadores parceiros. Foram mais de 3 milhões de itens de segurança e repasse mensal de R$30,00 para quem não consegue retirá-los. Oferecemos também o Avus, um plano de vantagens em saúde com consultas e medicamentos com descontos. Já destinamos mais de R$113 milhões dentre todas as iniciativas de proteção e apoio desenvolvidas em razão da pandemia. Foram criados dois fundos de apoio destinados aos entregadores por apresentarem sintomas/confirmação de COVID-19 ou por fazer parte dos grupos de risco. O fundo, que prevê 28 dias de afastamento, corresponde à média de rendimentos do entregador no app dos últimos 3 meses.”
A emprega também menciona a criação de uma tecnologia de entrega sem contato, onde concentram-se os pagamentos no aplicativo evitando o contato na hora de pagar para proteger os entregadores e os consumidores.
O Uber Eats, James Delivery e Rappi não responderam às questões enviadas pela Agência Nossa até o fechamento desta reportagem.
Edição de Sabrina Lorenzi