Rômulo Fontineles Silva deixou para trás família e amigos no norte do Piauí para tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro após receber uma proposta de emprego. Acreditou que faria parte da equipe de uma construtora, mas precisou ser resgatado por auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (SRT/RJ) por se encontrar em condição análoga a de escravidão.
“Eu morava na casa da minha mãe, tinha meu negócio aos trancos e barrancos, mas funcionando. Tinha acabado de me formar na época. A situação que aconteceu no Rio desencadeou muita coisa ruim dentro de mim. Depressão, ansiedade, dúvidas sobre mim mesmo, sobre a minha vida, sobre o futuro. Um sentimento de derrota gigantesco”, contou Rômulo à Agência Nossa 133 anos depois da abolição da escravatura no Brasil.
Rômulo e outros doze trabalhadores foram encontrados em um alojamento onde havia apenas uma cama com colchão doado por vizinhos. Também não havia água filtrada no local.
“Consegui o ´emprego´ por indicação. Na primeira quinzena o trabalho não saiu, e em seguida a obra parou e deixou os trabalhadores sem salário e sem comida. Não recebemos nada de pagamento e me deparei com a gente comendo arroz com salsicha sentados no chão. Eu fui contratado como apontador, para cuidar de documentos, mas depois comecei a fazer diversas outras coisas”, relata Rômulo.
Somente neste ano, até o dia de aniversário da Lei Áurea, 314 trabalhadores foram encontrados em condição análoga a de escravos no Brasil. Desde o início dos registros de resgate, em 1995, mais de 56 mil pessoas foram resgatadas. As informações constam do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, divulgado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia.
Graças às operações do poder público, 49,1 mil trabalhadores foram formalizados e R$ 112 milhões foram pagos em verbas rescisórias.
Rômulo é um desses trabalhadores libertos que de alguma maneira conseguiram uma vida melhor depois de passar pela experiência análoga a de escravidão.
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Depois de ser resgatado, ele recebeu ajuda psicológica e teve acompanhamento de um projeto social desenvolvido pela organização cristã Cáritas e o Ministério Público do Trabalho (MPT).
“Tive ajuda do pessoal da Ação Integrada. Eles me deram ajuda psicológica durante uns cinco meses, e foi quando eu me recuperei. Hoje em dia, sou uma pessoa completamente diferente daquele Rômulo. A ajuda da Cáritas foi fundamental; se não fossem eles, eu não teria sabido onde estava e como eu estaria agora. Porque eu não tinha vontade de viver, eu não tinha vontade de fazer nada. Eu só queria entrar no meu quarto e chorar”.
Ele recebeu auxílio psicológico de forma virtual e teve sua carteira de motorista custeada pelo projeto Projeto Ação Integrada, uma parceria do MPT com a Cáritas Arquidiocesana do RJ. “Foram três ajudas: primeiro a psicológica. Segundo, o acompanhamento, que até hoje eles me mandam mensagem para saber como estou. E a terceira é o curso, que, digamos assim, é o carro chefe deles. Eles atendem muitas pessoas. Eles pegam pessoas que não têm conhecimento nenhum, que não sabem nem a situação em que estão, e dão conhecimento a essas pessoas.
“Demorou meses para cair a ficha de que eu realmente estava comendo arroz com salsicha sentado no chão. O trabalho escravo se apresenta de várias formas”.
Ele conta que possui licenciatura em Ciências Biológicas, pela Universidade Federal do Piauí. Nunca exerceu a profissão em Biologia, por falta de oportunidades, mas gosta do ensino. Já estagiou no ensino médio, em uma escola na zona rural da cidade dele, a 9 quilômetros do centro da cidade, mas nunca foi contratado. Passou 4 anos indo pra escola, distante, de graça, sem cobrar nada, por gostar do contato com os alunos e o ensino.
“Mesmo com uma licenciatura na área da educação, sem falar de outras experiências de vida que tenho, eu fui vítima de trabalho análogo à escravidão e eu não sabia que estava sendo”.
Hoje Rômulo paga suas contas com os rendimentos da gráfica que possui. Faz cartões de visita, fachadas de loja, quadros e trabalhos relacionados à comunicação visual. A gráfica funciona dentro de um quartinho. A pandemia afetou as vendas, mas ele segue firme. Solteiro, com 28 anos, ele mora com a tia.
“Gostaria de conseguir levar a minha história para mais longe. Eu sonho com a minha estabilidade financeira, o crescimento da minha empresa. Também quero muito conhecer o Rio, que infelizmente não pude conhecer enquanto estava na cidade, naquela situação.
Hoje me sinto liberto”.
Rômulo não cita nomes nem fala sobre os responsáveis pela experiência degradante que viveu. Mas a Agência Nossa foi apurar junto aos auditores fiscais do trabalho.
O site do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho informa que o responsável pelos empregados encontrados em situação de abandono é a empresa VW Consultoria e Construção Civil Eireli, com sede em São Paulo.
“Os auditores fiscais constataram a situação de abandono dos empregados. Questionaram o responsável pela contratação dos trabalhadores, que acusou a tomadora de serviços MRV Engenharia e Participações S.A. como sendo responsável por quaisquer danos causados aos trabalhadores. Na ocasião, alegou quebra de contrato da empresa com a tomadora. Após análise documental e declarações de trabalhadores, de prepostos da MRV e do contratante (…), os auditores-fiscais evidenciaram que o real empregador era WV Consultoria e Construção Civil”, informa o site.
A construtora MRV, segundo o site dos auditores, retirou os trabalhadores do alojamento, hospedou-os em uma pousada e forneceu as passagens de retorno dos trabalhadores às cidades de origem, “ciente da sua responsabilidade como tomadora dos serviços”. Os auditores-fiscais lavraram dois autos de infração à empresa MRV e outros 7 sobre a empresa VW.
A construção civil costuma ser um dos ramos com elevado número de resgatados. Mas o setor com mais vítimas do trabalho na série histórica é o de criação de bovinos, que representa 31% dos resgates realizados, de acordo com o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, desenvolvido pelo MPT e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Novo componente na pandemia
Na pandemia, o perfil do trabalho escravo ganhou um novo componente.
“O que a gente percebeu na pandemia foi o aumento nesses casos dos trabalhadores domésticos, porque passaram a ficar muito mais dentro de casa. O patrão com medo do vírus, não deixava ir pra casa, e ele tinha que ficar na residência”, afirmou o Alexandre Lyra, auditor fiscal no RJ.
O auditor conta dois casos solucionados no começo deste ano. Uma era uma senhora de 62 anos que estava há 40 anos numa residência sem direito a folga, férias, nem descanso no domingo, que dormia num quartinho sem luz no fundo da casa. “Para piorar a empregadora ainda tinha pego o saque do auxílio emergencial dela. Essa senhora saía pra catar latinha, juntava lá 5, 6, 7 reais e quando voltava entregava pra empregadora”.
A outra senhora, de 52 anos, que estava há 30 anos trabalhando em uma residência, foi resgatada porque estava à disposição da família 24 horas. Além de todos os afazeres da casa ela ainda tinha que cuidar de uma senhora com Alzheimer. “Esses 2 casos extremos levaram a gente a resgatar e identificar a situação como análoga à de escravo”.
Hoje, a primeira senhora está num abrigo da Prefeitura, sendo acolhida para voltar pra sociedade, e a segunda está em casa de parentes.
A psicóloga Yasmin França, da Cáritas, confirma a percepção do auditor.
“Algo que tem nos chamado a atenção nestes casos de trabalho doméstico, e que difere dos demais casos que costumamos atender, é que são mulheres com idades mais próximas da idade da aposentadoria. Então a construção desse projeto de vida, que para os demais casos passa por fazer curso, elaborar currículo, articular com SINE, e ter muitos anos de trabalho pela frente, pode ser muito diferente. É preciso pensar na dificuldade ainda maior, de conseguir emprego com mais de 50 anos, por exemplo”, conta.
Se for o caso, em articular com Defensoria Pública para obter a aposentadoria. Dependendo do tempo submetida ao trabalho escravo doméstico, o valor a receber após o resgate pode ser um fator importante a colaborar para esse projeto de vida. Assim como a importância do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários”, avalia.
Coordenação e edição de Sabrina Lorenzi