O Brasil mais que dobrou o consumo de agrotóxicos em uma década e já compra um quinto do que o planeta consome. O limite de resíduos de um tipo de pesticida na água brasileira é cinco mil vezes maior do que o permitido nos rios europeus. A soja produzida no Brasil pode ter até 200 vezes mais glifosato que a colhida na Europa, mesmo diante das suspeitas de que a substância pode causar câncer. Um número cada vez maior de pesticidas são permitidos nos principais tipos de culturas agrícolas — inclusive dezenas banidos em países desenvolvidos.

As conclusões, publicadas pela Universidade de São Paulo (USP) num amplo estudo da geógrafa Larissa Bombardi, podem ser turbinadas pelo projeto de lei 6.299/2002, que flexibiliza as regras para registro de novas substâncias e está pronto para ser votado no plenário da Câmara. Por trás deste crescimento acelerado, o sistema financeiro incentiva o uso de agrotóxicos no Brasil.

Levantamento do Banco Central realizado a pedido da Agência Nossa mostra que dos R$ 402,7 bilhões de crédito rural concedido desde 2016, apenas R$ 39 milhões foram destinados às linhas Agroecologia e Produtivo Orientado, do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e Sistemas Orgânicos, do Programa Agricultura de Baixo Carbono (ABC). Estes programas de financiamento, criados para estimular a produção no campo sem agrotóxicos, representam pífios 0,01% do total de desembolsos concedidos ao setor rural desde o cadastramento completo desses dados no sistema do BC.

Foto: MAPA

A soja produzida no Brasil pode ter até 200 vezes mais glifosato que a colhida na Europa, mesmo diante das suspeitas de câncer

“O sistema de crédito foi desenhado para este modelo que incentiva o agrotóxico. Quando um agricultor que não usa pesticida vai preencher os requisitos para o crédito, muitas vezes o sistema bancário não aceita, alegando que o pacote tecnológico não está sendo cumprido. Muitas vezes o agricultor é constrangido a aplicar o pacote tecnológico, que inclui o uso de agrotóxicos, para atender às exigências dos bancos”, afirma o secretário-executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Denis Monteiro.

A produtora de laranjas, verduras e legumes orgânicos Rosa da Silva faz parte da estatística excludente do crédito rural. Ela conta que tem dificuldade de preencher os requisitos que os bancos exigem para tomar o empréstimo. Rosa gostaria de ampliar a produção de alimentos no seu estabelecimento em Itaboraí (RJ). O maior entrave para conseguir crédito, segundo ela, está nas garantias exigidas pelas instituições financeiras.

“É preciso repensar este sistema de crédito”, faz coro Monteiro, engenheiro agrônomo que representa produtores de alimentos orgânicos.

Falta de mecanismos para solicitação de crédito

Diagnóstico do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) aponta falta de conhecimento dos agentes do sistema financeiro e de uma metodologia adequada ao financiamento da agricultura livre de agrotóxicos.

As planilhas que servem como referências de custo são apontadas como um dos maiores problemas. “Se por um lado quase todos os financiamentos para a produção convencional têm planilhas correspondentes, pouco se avançou na elaboração de planilhas específicas para os sistemas de produção agroecológica”, assinala o documento, elaborado por técnicos do governo e entidades reunidas do setor de agroecologia.

Os especialistas observam ainda que as fontes de crédito para a agricultura orgânica são pouco divulgadas e raramente apresentadas pelas instituições como opção ao tomador de crédito rural, ao contrário do financiamento para a agricultura que segue o modelo tradicional, com uso de agrotóxicos. Fornecedores de tecnologias e insumos para o plantio, inclusive de agrotóxicos, costumam financiar os agricultores, estimulando o consumo de seus produtos e equipamentos.

O governo federal disponibiliza linhas de crédito voltadas para a agricultura sem agrotóxicos por meio de dois programas. A agricultura familiar, a reforma agrária e os povos e comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas podem acessar linha de crédito do governo Pronaf Agroecologia, coordenada pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário (MDA). Sob a gestão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o ABC Orgânico é orientado para a produção sem agrotóxicos de agricultores de maior porte.

Grandes bancos comerciais como Bradesco e Itaú não aparecem entre agentes repassadores destas linhas de crédito “verdes” segundo o levantamento do Banco Central. Os dois bancos privados não responderam à reportagem se ofertam crédito para agricultura orgânica, até o fechamento desta reportagem. Já Banco do Brasil, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e Santander despontam entre os principais repassadores de crédito para a produção orgânica.

Despreparo nas instituições financeiras

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o tema escancara a falta de tradição dos agentes em operar com este tipo de crédito rural. Na publicação “A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica no Brasil”, especialistas no tema afirmam que o pouco entendimento das instituições financeiras sobre as características da agroecologia tem levado os bancos a direcionar as demandas dos agricultores e suas organizações sociais para outras modalidades de crédito.

De todas as linhas do Pronaf, o subprograma Agroecologia foi o que financiou o menor volume de total de recursos e o menor número de contratos.

“Os números disponíveis mostram que as linhas do Pronaf Verde apresentam um desempenho financeiro insignificante em comparação aos indicadores da política de crédito nacional, bem como em relação às demais modalidades de financiamento do Pronaf voltadas à modernização da agricultura familiar … Do mesmo modo, a linha de crédito ABC Orgânicos também não conseguiu deslanchar”.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirma que defende a diversificação de fontes de financiamento para o agronegócio. “Embora o crédito rural já possua um modelo maduro e estruturado de financiamento, a entidade e seus bancos associados realizam periodicamente sugestões de melhorias, por entender que um sistema financeiro eficiente é condição essencial para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do País”, informou, por meio de sua diretoria de comunicação.

As linhas de crédito do governo que incentivam produção sem agrotóxicos têm parcela inexpressiva no total de contratos de crédito para o setor rural. O Banco Central informa que, dos 4,7 milhões de contratos no âmbito do crédito rural (inclusive Proagro), somente 6 mil foram destinados para agroecologia do Pronaf de janeiro de 2016 a junho de 2018.

Para o ABC Orgânico, voltado para agricultura de maior porte que a familiar, o total de contratos não passou de 14 desde 2016, quando foi cadastrado no sistema de crédito. É preciso lembrar que os agricultores orgânicos são poucos no universo de produtores rurais, o que torna a fatia de crédito naturalmente menor. Segundo o último Censo Agropecuário, apenas 2% dos estabelecimentos agropecuários fazem uso de agricultura orgânica.

Sobre o baixo desempenho do ABC Orgânico, o Ministério da Agricultura informa que reflete a demanda dos produtores para essa finalidade. “O ABC continua sendo um programa prioritário, cujo apoio foi ampliado para a safra 2018/19, com a fixação de taxa de juro de 6%, sendo que para o Subprograma ABC ambiental a taxa é de 5,25%, contribuindo para o cumprimento do código florestal no que se refere à recomposição das áreas de Reserva Legal e (RL) e de proteção ambiental (APP)”.

Carência de profissionais

Por falar em juros, o custo do dinheiro não é uma queixa dos que defendem crédito para a agricultura sem agrotóxicos, pelo contrário. As taxas são convidativas, mais baixas que as do mercado. O problema, além da falta de metodologias específicas e divulgação das linhas, é a ausência de assistência técnica para a elaboração de projetos, destacam os especialistas que assinam a publicação do Ipea.

O problema da falta de assistência técnica tem origem na ausência de formação profissional, sobretudo de agrônomos especializados em agroecologia, diz Maria Fernanda de Albuquerque Costa Fonseca, professora de Agroecologia e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Somente no oitavo período o aluno vai ouvir sobre agricultura orgânica. Ele passa toda a faculdade aprendendo o jeito convencional e só no final vai aprender alternativas”.

O estudo do Ipea corrobora o vazio da educação nesta área, dizendo que as grades curriculares estão muitas vezes ancoradas nos princípios da chamada ‘Revolução Verde’.

“Em termos estratégicos, o estilo de desenvolvimento privilegiado pela política de crédito rural brasileira tem sido o da modernização produtivista da agricultura nos moldes da Revolução Verde, tendo como base o estímulo à mecanização adaptada aos processos produtivos pautados na monocultura e no uso intensivo de produtos químicos nas lavouras . Assim, além de financiar com recursos públicos subsidiados a ‘moderna agricultura’ , o sistema contribui diretamente para sustentar a rentabilidade das indústrias produtoras de insumos e máquinas agrícolas, tais como aquelas dos ramos de sementes melhoradas geneticamente, fertilizantes, agrotóxicos, tratores”, conclui a publicação.