O assassinato de um homem negro nas dependências de uma unidade do Carrefour às vésperas do dia da Consciência Negra escancarou mais uma vez a longa distância entre discurso e prática nas empresas. O crime deu munição aos céticos quanto às organizações que seguem (ou dizem seguir) os princípios ESG — sigla para Ambiental, Social e Governança em inglês — e instigou debates nas redes sociais.

Ao publicar nota de repúdio reforçando seu compromisso com equidade racial, diversidade e respeito, a Ambev — fornecedora de peso do Carrefour — afirmou que convocou a rede de supermercados e pediu “medidas imediatas e efetivas”. Entre elogios e comentários de apoio, o post também foi criticado por usuários na rede social LinkedIn por não anunciar uma ação mais drástica.

“Seria legal saber de que forma a Ambev manterá o tema na pauta em suas interações comerciais com o Carrefour. Peço que faça novas postagens com os desdobramentos do caso”, questionou o executivo de um instituto ligado a ações de responsabilidade social.

Em outro comentário crítico, um representante do setor industrial cutucou: “E caso as medidas imediatas e efetivas não sejam cumpridas, qual será o pênalti? Vocês deixarão de fornecer seus produtos para o Carrefour?”

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O espancamento até a morte de Beto por um segurança e um policial militar de uma terceirizada contratada pelo Carrefour colocou em xeque a sigla ESG, que engloba critérios para investidores que não visam somente o lucro mas também no modo como essa organização lida com questões de sustentabilidade, governança e responsabilidade social.

O Brasil é o segundo maior mercado da rede Carrefour, atrás apenas do país-sede. Presente em 30 países, o supermercado francês recebeu em 2019 o prêmio de melhor empresa do setor de varejo no Guia Exame de Diversidade, que elege as empresas que são referência em inclusão no mercado de trabalho.

“O grande desafio do Carrefour é reconquistar a confiança perdida”, afirma à Agência Nossa Dario Menezes, diretor da Caliber, consultoria internacional com foco em gestão de reputação corporativa e marca.

“Terá que demonstrar que é uma boa empregadora, com bom treinamento e supervisão para conseguir demonstrar uma liderança que está sendo muito questionada por toda a sociedade brasileira. E para os investidores terá que demonstrar que a empresa está no caminho dos princípios ESG e que tem condições de mitigar o risco reputacional”, acrescentou o especialista em branding, lembrando ainda que “mais do que uma comunicação técnica, cheia de juridiquês, a empresa precisa demonstrar empatia com as demandas da sociedade brasileira”.

Em postagem na rede social LinkedIn, a fundadora do Grupo Máquina Cohn & Wolfe e especialista em reputação corporativa, Maristela Mafei, destacou que as medidas do Carrefour apresentadas no dia seguinte ao caso não foram suficientes.

Não basta

“Oi Carrefour Brasil, não basta demitir funcionários, não basta trocar empresa terceirizada de segurança, muito menos lançar campanha pela diversidade diante de atos de brutalidade como o que matou o Beto ontem, em Porto Alegre. Algo de muito errado existe na cultura da empresa, nas lideranças que autorizam essas contratações, nos critérios que utilizam. Deve ter algo sério, porque a empresa é reincidente em casos de violência contra negros”.

Paradoxalmente, o Carrefour faz parte de índices ligados à agenda ESG na bolsa francesa. Mesmo tendo protagonizado alguns casos que abalaram sua reputação no Brasil, antes do crime bárbaro contra Beto. Em agosto deste mesmo ano, um dos funcionários infartou durante o expediente e seu corpo foi encoberto com guarda-sol para que a loja permanecesse aberta. Em 2018 a vítima foi um cachorro no interior de São Paulo.

“Questões como esta, com potencial para atingir em cheio o suporte da responsabilidade social, um dos pilares tão em voga atualmente nas empresas que buscam se adequar à nova realidade mundial, ainda passam despercebidas pelo mercado. As ações ordinárias (ON) do Carrefour reagiram nesta manhã em leve alta, no pregão morno em que o Ibovespa até cai um pouco”, afirmou Irany Tereza em coluna para o Broadcast publicada no dia seguinte ao crime.

O jornalista Vinicius Torres Freire também questionou o bom desempenho da rede a despeito dos casos polêmicos que contradizem o compromisso com responsabilidade social. “Terceirizar a imundície é um negócio, na contratação de empresas selvagens de segurança ou de feitores que escravizam imigrantes costureiros de roupa de ricos, mas não só. O Carrefour terceirizou sua segurança para uma empresa de policiais, propriedade ilegal. Um funcionário dessa Vector matou João Alberto Freitas, de 40 anos”, afirmou em sua coluna no jornal Folha de São Paulo.

Descolamento

Ele lembrou que apesar de tudo, o Carrefour faturou R$ 60 bilhões em 2019 e em 2020, já está faturando cerca de 17% mais. O lucro neste ano já cresceu 49,5%.

Em nota que circulou em suas redes sociais, o Carrefour classificou o crime como “uma tragédia de dimensões incalculáveis” e o resultados das vendas do dia foram doados para entidades ligadas à luta pela consciência negra.

Nesta terça-feira (24), a empresa anunciou fundo de R$ 25 milhões para ações de inclusão racial e combate ao racismo.

Para a colunista do serviço do grupo Estado, o reconhecimento e a repercussão de casos como esse são apenas o primeiro passo para que as mudanças ocorram.

De concreto, a editora Ediouro anunciou a suspensão da distribuição do livro “A Empresa Antirracista”, de Maurício Pestana, que traria uma entrevista com o presidente do Carrefour Brasil, Noël Prioux.

No mesmo dia e ainda em resposta às manifestações, 12 fornecedores da rede anunciaram um compromisso público de aliança em defesa da diversidade racial, entre elas a BRF, Coca-Cola, Danone, General Mills, Heineken, JBS, Kellogg’s, L’oréal, Mars, Mondeléz, Nestlé e Pepsico. É o começo.

Reportagem de Sabrina Lorenzi e Brenda França; edição de Sabrina Lorenzi