O Tesouro Nacional trava uma queda de braço com o Governo do RJ no âmbito do regime de recuperação fiscal, o que traz à tona o antigo debate entre políticas públicas ortodoxas e heterodoxas. A ausência de um consenso faz lembrar do ensinamento contido no ensaio do entendimento, do filósofo liberal John Locke, que  exemplifica com o marinheiro que sabe a extensão de sua linha. Ele tem clareza de que ela não pode alcançar toda o oceano, mas é suficiente longa para orientar a sua viagem, preveni-lo de esbarrar contra escolhos.

Quando conhecemos nossas forças, ensina o filósofo, saberemos melhor o que intentar com esperanças de êxitos. Ao que tudo indica, o Tesouro e o Estado do Rio podem bater em pedras submersas no fundo do mar com tanto vigor, que o próximo governador terá no seu colo uma bomba, que, se explodir, jogará estilhaços em toda a União em 2023. A principal crítica do Tesouro é o fato de o RJ, beneficiado pelo regime especial desde 2017, propor aumentos salariais aos servidores públicos.

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No rigor da lei, o Tesouro está certo, pois o Estado teve um alívio de R$ 92 bilhões em suas contas, dando fôlego para pôr os salários do funcionalismo em dia e fazer funcionar os serviços essenciais a ponto de obter superávit primário. A dívida total, de R$ 172 bilhões, é impagável, assim como a imposição de honrar com R$ 24 bilhões neste ano, no caso de descumprimento das regras da recuperação fiscal. Colapsa os serviços públicos e paralisa os negócios, piorando, ainda mais, a combalida economia fluminense, que sofreu muito com a recessão iniciada em 2015, intercalada com alguns picos de baixíssimo crescimento, e a pandemia.

Por sua vez, reajustar o servidor, noves fora 31 processos para a apuração de irregularidades na execução do regime especial, soa como um privilégio, por mais que os governantes fluminenses _ três deles foram presos por atos ilegais no exercício do cargo e um quarto por suposto malfeito no Governo Temer _ tenham sangrado os cofres públicos, contraindo dívidas bilionárias. Erros do passado não podem justificar medidas corretivas do presente. Da mesma forma, por mais que o RJ seja prejudicado no esquizofrênico sistema de recolhimento de impostos, a mudança só pode ser feita por meio de uma ampla reforma tributária _ a última data de 1966 comandada pelo advogado Gilberto de Ulhôa Canto.

Independentemente de disputas políticas, como explicar a um servidor que, em razão de o regime vigorar desde 2017, ele não pode ter aumento e ficará por nove anos sem qualquer reajuste. É evidente que as autoridades precisam encontrar um mecanismo legal para a atualização salarial. Taxar como bandalha ou um termo mais chulo qualquer reajuste de muitas categoriais é simplificar o problema. Seria como congelar a verba da saúde em plena crise sanitária ou cortar o orçamento de infraestrutura diante de uma catástrofe causada pelas chuvas em nome do ajuste fiscal. Os salários, de modo geral, são baixos e profissionais qualificados saem do Rio em direção a estados que oferecem uma remuneração competitiva.

 

O Governo RJ tem razão que o problema não pode ser tratado como uma simples equação de receita e despesa e, com isso, provocar o caos na máquina pública. Não se trata de um botequim. Por definição, estados não entram em recuperação judicial. Mesmo o monetarista mais empedernido sabe que o interesse público se sobrepõe a regras ultrapassadas, que possam causar enorme dano a uma comunidade. O mesmo vale para o teto dos gastos. O senador José Serra propõe que o teto seja um instrumento _ e não o fim _ de uma meta a ser cumprida dentro da trajetória para a obtenção do equilíbrio e sustentabilidade da dívida pública. A PEC 182 cria um sistema periódico dos gastos públicos, e evita malabarismos com o pagamento dos precatórios por parte do Ministério da Economia, o mesmo que agora torpedeia a proposta do governo fluminense. Com isso, longe de justificar um erro grosseiro com o outro.

Fora da negociação política, conduzida de forma republicana, dificilmente o RJ e o Tesouro encontrarão uma solução exequível para ambos os lados. Dívida boa é aquela que pode ser paga sem prejuízo do interesse público. Fazer conta de aritmética rudimentar ou tola é aumentar o conflito distributivo, que piorou durante a pandemia, engrossando a fileira de pobres e miseráveis nos grandes centros urbanos. É obrigação do Estado, ensinava o economista John Keynes, prover os seus cidadãos com uma vida digna.

O Tesouro Nacional tem razão ao apontar ilicitudes no regime, assinado em 2017, e se opor a mudanças que poderiam suscitar interpretações políticas – o governador Claudio Castro, aquele que tem um vozeirão como cantor de gospel, é eleitor de Jair Bolsonaro. Isso não significa, porém, deixar de pensar grande, calcular a linha na medida certa, como ensina Locke, e evitar uma situação catastrófica em 2023, no segundo maior estado da federação. Em meio a esta situação crítica, a coluna quer saber onde estão as lideranças empresariais do RJ. Há uma desconfiança de que permaneçam escondidas atrás de uma árvore frondosa, que projeta uma grande sombra para se refestelarem da gravíssima crise fiscal do Rio, no escaldante verão carioca. “La dolce far niente”, como diria o jornalista Ricardo Boechat.

*Coriolano Gatto é jornalista e colunista da Exame, onde este texto foi publicado originalmente

Este artigo reflete a opinião do autor e não necessariamente da Agência Nossa.