Diante da guerra da Ucrânia, o governo brasileiro poderá rever a política agrícola atual de zerar estoques reguladores de alimentos. O conflito, além de envolver dois dos maiores fornecedores de alimentos do mundo, quebrou a era de paz e estabilidade geopolítica que permitiam aos países viver sem necessidade de reservas para garantia de abastecimento.

O Brasil durante os seis primeiros meses do ano não realizou estoques públicos de trigo e de outros alimentos básicos, em pleno conflito, conforme reportagem da Agência Nossa publicada na véspera desta entrevista. Ao atender nosso pedido de entrevista, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) se mostrou disposta a inverter esta tendência. 

Indagado sobre a necessidade de estoques, o diretor de Informação Agropecuária e Política Agrícola da Conab, Sergio De Zen, afirma que o momento é de análise e de evolução. 

“A gente vai evoluir, o mundo pós-guerra (Ucrânia) precisa desse olhar”, afirmou, após dizer que “isso é um fator novo que precisa ser estudado. Vamos analisar”.

Na entrevista, ele explicou que o governo está limitado por uma lei que impede compras de alimentos com preços muito elevados, além de custos mínimos de produção. E que a privatização dos armazéns da Conab, anunciada pelo governo recentemente, não atrapalha a estocagem de alimentos no Brasil.

Entre 2021 e 2022, os estoques reguladores de milho despencaram. Foto: Divulgação

Entrevista com Sergio De Zen, diretor de Informação Agropecuária e Política Agrícola da Conab.

Agência Nossa: Qual o papel da Conab e do governo para a política agrícola do País?

Sergio De Zen: A Conab continua sendo uma instituição voltada para estabilizar preços. Mas temos limitações legais. Temos de seguir lei de 2003 que estabelece diretrizes para aquisições de produtos no mercado agrícola. As compras podem ser realizadas quando o preço de mercado estiver abaixo do mínimo fixado. Para saber como chegamos ao preço mínimo, calculamos nossos custos variáveis de produção. Trata-se uma política de garantia de renda do agricultor, geralmente os pequenos se beneficiam. 

Então com a guerra e a disparada dos preços no mercado internacional, o governo não pode teoricamente comprar alimentos para estoques porque os valores estão bem acima dos preços mínimos?

Exatamente. Pelas regras atuais não podemos se eu não tiver preço de mercado abaixo do preço mínimo.

Neste momento crítico, sabendo-se que boa parte senão a maioria dos 14 milhões de brasileiros que entraram no mapa da fome são do campo e dependentes desses programas de compras do governo, não seria importante realizar esses estoques?

Não é só uma questão de produção agrícola, mas de distribuição de renda. Com a pandemia vimos um desarranjo da economia em praticamente todos os países, a sociedade ficou mais pobre, de uma maneira geral. Outro problema é o preço relativos que se alteraram em todos os países. Por isso vemos o mundo todo praticando políticas de distribuição de renda, auxílios. Por outro lado, com as pessoas em quarentena, sem gastar com cultura e lazer, sobrou dinheiro dessas famílias para aumentar os gastos com comida, a demanda agregada aumentou. Isso tudo extrapolou a agricultura. Lutamos para que o fluxo de alimentos não fosse quebrado, nossa luta foi para manter o fluxo. 

E conseguiram, o fluxo foi mantido. O governo Lula/Dilma, mesmo tendo sido deles essa lei, estocou bastante, realizaram compras importantes junto a agricultura familiar, com política de proteção alimentar …

Mas o que é exatamente a agricultura familiar? Muitos agricultores cresceram, passaram a uma produção que não é mais de subsistência. Acho que o nome mais correto hoje a ser usado é agricultura de subsistência. Aquela que não gera excedentes de renda. O que se chama hoje de agricultor familiar não é nem grande nem pequeno. 

Além disso, houve mudanças significativas nos últimos anos que tornaram necessário pensar na evolução das políticas antigas, pois a produção evoluiu. Hoje com muito mais produtividade tem-se os alimentos com mais facilidade, os estoques não são tão necessários como antigamente, fluxo de produtos ao redor do mundo é muito intenso. O hemisfério sul cresceu em importância no volume de produção e o mundo tomou decisão com base na evolução da produção (agrícola). Feijão hoje tem toda hora, antes era três vezes por ano. Ninguém quer feijão de duas safras atrás. O mesmo acontece com o arroz. Arroz, feijão e mandioca merecem muita atenção, porque, sendo muito consumidos pela população brasileira, não podem faltar. Mas também não podem sobrar, porque só brasileiro consome. Se sobrarem esses produtos a renda dos pequenos produtores é duramente afetada. Recentemente temos alguma mudança, com países da América Central e do Sul consumindo muito arroz. Parece que trocaram batata por arroz.

Mas nem em tempos de guerra (que envolve inclusive países chave na produção de alimentos) e vários países se armando novamente com orçamentos bélicos voltando à cena, mesmo assim os estoques de alimentos são desnecessários?

Isso é um fator novo que precisa ser estudado. Vamos analisar isso. A (então) ministra Tereza Cristina soube conduzir isso (abastecimento) muito bem durante toda a pandemia. Não faltou alimento. Os Estados Unidos também não estocam alimentos.

Mas nos EUA a fome não bateu como no Brasil …

Eles têm sim problema da fome. O importante é que a gente precisa antever problemas futuros. Investir em modelos preditivos de clima, produtividade e consumo é fundamental. Ao evitar a surpresa e oferecer mais segurança alimentar.

Interessante saber que vocês estão dispostos a reavaliar essa questão …

A gente vai evoluir. O mundo pós-guerra (Ucrânia) precisa desse olhar. Vamos ver o que deu certo e o que deu errado. O que a Argentina por exemplo fez de pior que o Brasil? E o contrário, o que o Uruguai fez que deu tão certo? Assim como o Paraguai, que evoluiu em soluções de alimentação. Tem também o Chile. Enfim todos os países tiveram acertos e erros precisamos estudar e aprender com essa fase da história. É uma questão complexa. Não posso dizer que vai ter mudança radical. É uma perspectiva, uma fase para se estudar.

A saída maior da fome passa pela educação. É uma questão complexa com vários vetores que precisam ser aplicados em conjuntos para que as pessoas tenham condições de vida melhor como resultado de seu trabalho. 

Vai dar para fazer estoques novamente com a inclusão dos armazéns da Conab no plano de privatização do governo?

Os armazéns foram construídos no período militar, em lugares que hoje se tornaram mais populosos e hoje são inadequados para estocar alimentos. São armazéns que não estão em condições ideais. E hoje temos uma capacidade de estocagem de pequenos agricultores que é muito maior, de 6 milhões de toneladas, bem maior que a capacidade da Conab. 

*Matéira atualizada em 01/08 com mudança no título para dar mais clareza ao autor da ação