O governo brasileiro zerou os estoques reguladores de trigo apesar da guerra de dois principais exportadores do alimento que já fez disparar os preços. O Brasil interrompeu completamente as reservas públicas do cereal no primeiro semestre, em meio ao conflito deflagrado entre Rússia e Ucrânia. Em 2021, o País estocou 18 milhões de toneladas do insumo. 

Enquanto os estoques foram zerados, nos seis primeiros meses deste ano, o preço da farinha de trigo aumentou 25%; do macarrão, 14,2% e do pão francês, 13,5%, em decorrência direta da alta do preço do insumo no mercado internacional, pressionado pela guerra. 

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Potência na produção de milho, o Brasil também reduziu em 92% os estoques reguladores neste ano, segundo levantamento da Agência Nossa com base em dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). 

E quase zerou as reservas de arroz, outro produto básico na cesta da população. Mandioca, que ainda contava com algum estoque regulador, está zerada desde o ano passado. As reservas de café são pífias desde os últimos três anos. E o feijão, que também ficou bem mais caro para o consumidor nos últimos anos, não tem estoque regulador desde 2017.

Um dos objetivos dos estoques públicos é justamente regular preços de mercado de alimentos básicos. Outro é doar para populações em situação de fome, alimentando também programas sociais e compras de alimentos de pequenos agricultores. Muitos dependem dessas vendas para sobreviver. 

Fome

Não à toa a maior proporção de brasileiros com insegurança alimentar está no campo. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de pessoas entraram no mapa da fome no Brasil, segundo pesquisa divulgada em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). No total,  33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País.

“O governo federal não direciona orçamento que garanta condições para a Agricultura Familiar produzir e combater a fome. O resultado dessa má gestão é a falta da alimentação nos armazéns da Conab, o Brasil de volta ao mapa da fome, com mais de 30 milhões de pessoas com fome e 70 milhões vivendo em insegurança alimentar e nutricional”,  afirma a secretária de Política Agrícola da CONTAG, Vânia Marques Pinto.

Outra função importante dos estoques é assegurar a alimentação da população em casos de guerra, acidentes naturais e períodos de escassez. Braço de alimentação e agricultura da ONU, a FAO recomenda aos países que armazenem estoques equivalentes a três meses de consumo da população, para garantir a segurança alimentar. 

Lavoura de trigo no RS. Foto: Divulgação FecoAgro/RS

E a lei 8.171, de 1991, que dispõe sobre a política agrícola do país, determina que é papel do Estado manter estoques bem cuidados para abastecimento e calibragem de preços que devem ser adquiridos, preferencialmente, de pequenos e médios produtores.

Ao contrário das recomendações da FAO, da legislação, sem considerar os tempos de guerra, nem a volta da fome e da disparada na inflação dos alimentos, o governo acelerou os passos largos na redução dos estoques iniciada em 2013 e aprofundada em 2016 com a pegada mais liberal do governo Temer.

Privatização

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) desativou dezenas de armazéns e anunciou no ano passado a inclusão de 180 de unidades armazenadoras para análise de concessão e venda. O argumento são os gastos “elevados” de armazenamento. Seria uma economia da ordem de R$ 11 milhões por ano, menos do que a família Bolsonaro gasta com serviços de copa e limpeza no Palácio do Planalto, segundo valores revelados pela imprensa em 2020 (quando os dados de prestações de contas eram mais acessíveis).

A economista Vilma da Conceição Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal afirma que a principal causa do aumento dos alimentos  é justamente a redução do apoio à agricultura familiar. Afinal, lembra ela, quase metade da produção dos alimentos que chegam à mesa da população brasileira é produzida por agricultura familiar. Após o impeachment da ex-presidente Dilma, relembra, o apoio em termos de financiamento, distribuição e logístico foi reduzido brutalmente.

Pesou muito para a onda de aumentos, segundo ela, a determinação do governo Bolsonaro de reduzir ainda mais os estoques reguladores de alimentos, que “era o que garantia o equilíbrio de preços principalmente em períodos de entressafra”.

Redução aguda do programa de segurança alimentar provoca fome no Brasil

O governo Bolsonaro deu sequência às consecutivas reduções no orçamento do programa de segurança alimentar. Antes disso, o governo Temer promoveu corte radical, reduzindo o orçamento de R$ 540 milhões em 2016 para R$ 330 milhões em 2017. Mas foi Dilma quem iniciou a fase de cortes. Em 2015, o programa contava com um orçamento de R$ 640 milhões. 

O ápice dos investimentos na agricultura familiar foi em 2012, quando foram liberados R$ 839 milhões para o mesmo programa. Naquela época, com as compras de alimentos bem mais gordas pelo governo, dos pequenos agricultores, os estoques públicos de arroz por exemplo somavam cerca de um milhão de toneladas, número que recuou drasticamente desde então, até os pífios 10,6 mil toneladas no primeiro semestre de 2022 (se mantiver os volumes chegará a 21 mil no ano). 

Também em 2012, o Brasil ainda tinha estoques de soja. Desde então, o governo aboliu os estoques do maior produtor de soja do mundo. A maior parte da safra vai para a exportação, ainda mais atraente nos últimos dois anos com dólar em alta e maior demanda pelo produto, levando preços internos às alturas e forçando consumidores brasileiros à alta de 20,72% somente neste ano.

Estoques de trigo ficaram zerados nos seis primeiros meses do ano. Foto: Divulgação

Os defensores do fim dos estoques públicos argumentam que como grande produtor o Brasil de alimentos o País não precisa de reservas, defende que o mercado se regula sozinho. Os críticos rebatem com o aumento de preços e a volta da fome sobre milhões de pessoas, agricultores antes beneficiados pelas compras de estoques.

O diretor de Política Agrícola e Informações da Conab, Sérgio De Zen, afirmou em entrevista recente ao Valor que a formação de estoques públicos nunca teve como objetivo a segurança alimentar da população, mas sim a garantia de preço e renda aos produtores e de oferta a programas sociais. Segundo ele, a falta de previsibilidade de dados é que deixa espaço para a especulação e o aumento das cotações.

Países com grandes populações como a China mantêm estoques de alimentos, assim como pequenos países da América Central. Os Estados Unidos, ao contrário, não possui política agrícola – mas também não enfrenta o fantasma da fome como está enfrentando o Brasil.

*Com reportagem de Pedro Menezes e Indianara Reis, em especial para a Agência Nossa