O diagnóstico apresentado ao presidente eleito Lula pela equipe de transição nos últimos dias de 2022 sugere a revogação de pelo menos 60 normas do governo Bolsonaro, entre decretos, portarias e atos normativos.  Segundo o texto, as normas elencadas enfraqueceram políticas públicas e esvaziaram direitos de cidadania.

As mudanças deverão ser feitas no começo de 2023, conforme sugere o relatório em uma listagem de dezenas de “providências imediatas”.

“Este relatório, portanto, delineia o caminho para as primeiras medidas que o novo governo deverá adotar, com sugestões de atos normativos a serem revogados ou reformulados, a partir de janeiro de 2023, a exemplo das legislações que flexibilizam o controle e compra de armas, o garimpo em terras indígenas e a lei de acesso à informação, entre outras”.

O documento se apresenta como “fotografia contundente da situação dos órgãos e entidades que compõem a administração pública federal” mostra o que classifica como “herança socialmente perversa e politicamente antidemocrática deixada pelo governo Bolsonaro, principalmente para os mais pobres”. 

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Resultado do trabalho de 32 grupos com participação de mais de 5 mil técnicos, o relatório foi entregue a Lula no mesmo dia em que foram anunciados vários futuros ministros e ministras. Além da lista de atos a serem revogados, o texto sugere mudanças na legislação trabalhista e previdenciária, que recentemente passaram por reformas.

“As propostas de providências imediatas contidas na listagem (…) podem ser efetivadas por meio de um conjunto de atos do Presidente da República nos primeiros dias após sua posse, em formato de decretos e despachos formulados por integrantes da Advocacia-Geral da União, em diálogo com as equipes técnicas dedicadas a cada temática da administração pública federal”.

Veja a listagem de mudanças e os respectivos argumentos da equipe de transição para o governo eleito:

Direitos sociais – 3 alterações

A proposta é de revisão de atos normativos relacionados aos direitos sociais e econômicos dos brasileiros, sendo alguns casos com impactos significativos para a população mais pobre, conforme objetivos elencados a seguir: 

Acabar com a obrigação de que agricultores rurais de famílias de baixa renda entreguem parte de sua produção para o Governo | Proposta de revogação parcial do Decreto nº 10.852/2021 (art. 76, § 4 e art.77), que regulamentou a contraprestação do “auxílio inclusão produtiva rural”, ou seja, trouxe a previsão de que o governo “tome pra si” 10% da produção de agricultores de baixa renda, em situação de vulnerabilidade, que receberam o auxílio, ignorando a situação de insegurança alimentar em que vivem tantas dessas famílias no campo. Como essa retirada de alimentos das famílias vulneráveis já está planejada para janeiro de 2023, a revogação é urgente. 

Recriar o Programa dos Catadores – Proposta de revogação da parte do Decreto nº 10.473/2020 (art. 1º) que acabou com o Programa Pró-Catador, que reunia ações de apoio a trabalhadores de baixa renda que se dedicam a coletar materiais reutilizáveis e recicláveis, promovendo inclusão social e econômica dessas pessoas e contribuindo para a sustentabilidade. A ação imediata seria de retomada da redação anterior da norma que tratava dessa política pública. 

Proteger as famílias brasileiras contra superendividamento | Sugestão de que o Presidente da República edite despacho orientando o Ministério da Justiça a revisar o teor do Decreto nº 11.150/2022 (Decreto do Superendividamento), para apontar caminhos de reversão do processo de superendividamento vivido pelas famílias brasileiras de baixa renda. A medida aumentará a segurança jurídica no tema, pois a constitucionalidade do ato está questionada no STF na ADPF 1.005 e na ADPF 1.006.

Armas – 8 decretos e 1 portaria

A proposta é de revogação de oito Decretos e uma Portaria Interministerial que incentivam a multiplicação descontrolada das armas no Brasil, sem fiscalização rigorosa e adequada. O descontrole coloca em risco a segurança das famílias brasileiras e, portanto, deve ser revertido pelo Ministério da Justiça, em diálogo com o Ministério da Defesa.

Sugere-se uma revisão rigorosa do conjunto de atos normativos que desmontou a política pública de controle das armas no país, e a substituição por uma nova regulamentação para a Lei 10826/2003 – Estatuto do Desarmamento, como uma das primeiras medidas do novo governo. Dessa forma, propõe-se a revogação do Decreto nº 9845/2019, do Decreto nº 9846/2019, do Decreto nº 9847/2019, do Decreto nº 10030/2019, do Decreto nº 10627/2021, do Decreto nº 10628/2021, do Decreto nº 10629/2021, do Decreto nº 10630/2021. Além disso, sugere-se que o Presidente determine a revisão, pelos Ministérios responsáveis, do teor da Portaria Interministerial MJ/MD 1634/2020.

Meio ambiente – 8 atos normativos

A proposta é de revogação de atos normativos de extrema gravidade, que geraram uma situação descrita como “estado de coisas inconstitucional” em julgamento do Supremo Tribunal Federal, conforme o voto da Relatora Ministra Cármen Lúcia na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 760 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 54.

O Pacote Verde, analisado pelo STF, é formado por sete processos judiciais em que são analisados atos do governo Bolsonaro que levaram à atuação estatal deficiente, à desestruturação da legislação ambiental brasileira, ao enfraquecimento da fiscalização e do combate a crimes ambientais e crimes relacionados aos povos indígenas, à desproteção do meio ambiente como um todo e, em especial, do bioma da Amazônia. Nas manifestações dos ministros constantes das decisões já proferidas, a constatação é de que há um quadro estrutural de ofensa massiva, sistemática e generalizada dos direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde e à vida digna. 

Nesse contexto, sugere-se uma série de revogações de atos normativos relacionados ao desmonte das políticas públicas ambientais, conforme objetivos destacados a seguir: 

A) Controlar o desmatamento | Proposta de revogação dos Decretos que abriram espaço para um processo acelerado de desmatamento ilegal nos diversos biomas brasileiros, inclusive desmanchando o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM). O PPCDAM foi historicamente um dos principais instrumentos capazes de controlar desmatamento, contribuindo para redução de emissão de gás. (Decreto nº 10.142/2019, Decreto nº 10.239/2019 e Decreto nº 10.845/2021). 

B) Acabar com a impunidade quanto às multas ambientais | Proposta de revogação de Decretos que anularam multas ambientais, paralisaram o sistema de fiscalização ambiental e criaram um ambiente de perseguição aos fiscais. A perda é de mais de R$ 18 bilhões para os cofres públicos, conforme questionamento feito pelo STF na ADPF 775. A proposta é de revogação integral do Decreto nº 9.760/2019 e de parte do Decreto nº 10.086/2022. 

C) Reverter a autorização para o garimpo ilegal na Amazônia | Proposta de revogação total do Decreto nº 10.966/2022, que liberou o garimpo ilegal na Amazônia a partir de uma regulamentação indevida do que foi chamado de “garimpo artesanal”. 

D) Retomar o Fundo Amazônia | Proposta de revogação parcial dos Decretos nº 10.223/2020 e nº 10.144/2019, nos pontos em que inviabilizaram a governança do Fundo Amazônia, instrumento de extrema relevância para o controle do desmatamento e o fomento a atividades produtivas sustentáveis no bioma. Com isso, há mais de R$ 3 bilhões parados no Fundo, que agora poderão ser utilizados. A urgência disso decorre inclusive de decisão recente do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 59. 

Por fim, quanto à estruturação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), sugere-se que o Presidente da República edite um despacho em que orienta o Ministério do Meio Ambiente a proceder imediatamente à revisão do teor do Decreto nº 11.018/2022, para eliminar os retrocessos realizados na estrutura e no funcionamento do Conselho. A medida é essencial para o cumprimento de decisão do STF na ADPF 623, devendo ser elaborada uma nova regulamentação, a partir de amplo diálogo com a sociedade

Sigilo de 100 anos – 2 medidas

A proposta é de revisão de casos em que houve imposição de sigilo de 100 anos pelo governo Bolsonaro para impedir o conhecimento público de documentos. Os casos revisados serão aqueles contidos em lista apresentada à Equipe de Transição por especialistas e entidades da sociedade civil com expertise na área de transparência. Sugere-se, a partir do trabalho técnico realizado pelo Grupo da Transição de Transparência, Integridade e Controle, que sejam adotadas as seguintes medidas: Medida A – Despacho do Presidente da República que determina, pelo princípio da autotutela da administração pública, que a Controladoria-Geral da União reavalie as decisões tomadas na lista de casos denunciados como de imposição indevida de sigilo de 100 anos; e Medida B – Despacho do Presidente da República que determina que a Advocacia-Geral da União elabore proposta de Parecer Vinculante que indique o escopo de aplicação possível da atual redação da Lei de Acesso à Informação relativa à proteção de dados pessoais

Privatizações – 13 revogações

A proposta é de revisão da lista de empresas que se encontram em etapas preparatórias e ainda não concluídas de processos de desestatização. Sugere-se que o Presidente da República edite despacho orientando os Ministérios responsáveis a revisar os seguintes atos relativos a empresas de grande relevância nacional: 

Petrobras: Resolução CPPI 240/2022 (recomenda inserção no PPI); 

Correios: Decreto nº 10674/2021 (PND), Decreto n. 10.066/2019 (PPI), Resolução CPPI 168/2021, Resolução CPPI 98/2019; 

EBC: Empresa Brasil de Comunicação: Decreto n. 10669/2021 (PND), Decreto n. 10.354/2020 (PPI), Resolução CPPI 169/2021, Resolução CPPI 98/2019; 

Nuclep: Nuclebrás Equipamentos Pesados: Decreto n. 10.322/2020 (PPI) e Resolução CPPI 92/2019; 

PPSA: Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural: Decreto n. 11.085/2022 (PPI) e Resolução CPPI 224/2022; 

Conab: Decreto n. 10767/2021 (PPI).

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o futuro ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, durante anúncio de novos ministros que comporão o governo.

Jovens e adolescentes – 4 revogações 

Derrubar regras ilegais que retiram proteção do adolescente aprendiz

Sugestão de que o Presidente da República edite despacho orientando o Ministério do Trabalho a revisar o teor do Decreto nº 11.061/2022, que, ao tratar de aprendizagem profissional, derrubou várias regras de proteção do adolescente. A partir dos debates necessários, deve ser proposta nova regulamentação para o tema.

Acabar com a política pública de educação especial que promove o isolamento social das crianças com deficiência

Proposta de revogação do Decreto nº 10.502/2020 – “Decreto da Exclusão”, uma política preconceituosa que exclui as crianças com deficiência do convívio com as demais crianças nos ambientes escolares, promovendo isolamento social inaceitável. O ato normativo é inclusive questionado no STF na ADPF 751 e na ADI 6590.

Recriar o Plano Nacional voltado à Juventude do Campo

Proposta de revogação da parte do Decreto nº 10.473/2020 (art. 1º, CCLXXII) que acabou com o Plano Nacional voltado à Juventude do Campo (antigo Decreto nº 8.736/2016). O Programa reunia ações de efetivação de direitos e inclusão produtiva para jovens nos territórios rurais. A ação imediata seria de retomada da redação anterior.

Avaliar o custo-benefício do Programa Nacional das Escolas Cívico- -Militares 

Sugestão de que o Presidente da República edite despacho orientando o Ministro da Educação a avaliar os resultados da política pública prevista no Decreto 10004/2019 sob critérios técnicos relativos ao custo-benefício, para definição sobre a dotação orçamentária respectiva e sobre sua continuidade.

Cultura – 6 revisões

Adequar as normas de fomento indireto à realidade da economia da cultura | Proposta de revogação do Decreto n. 10.755/2021, que regula o fomento a ações culturais via mecanismo de incentivo fiscal em âmbito federal. Pretende-se criar com agilidade uma nova regulamentação para o mecanismo, como uma das primeiras medidas do novo governo na área da cultura. Além disso, sugere-se que o Presidente da República edite Despacho orientando o Ministro da Cultura a revisar o teor dos seguintes atos: Instrução Normativa SECULT/MTUR 01/2022, Instrução Normativa SECULT/MTUR 03/2022, Portaria SEFIC/SECULT/MTUR 210/2021, Portaria SEFIC/SECULT/MTUR 604/2021, Portaria SECULT/MTUR 44/2021.

Quilombolas – 2 mudanças

Retomar a defesa dos direitos e dos territórios das comunidades quilombolas Sugere-se a edição de despacho do Presidente da República que oriente o INCRA e a Fundação Palmares a revisar os seguintes atos normativos: | Resolução INCRA nº 29/2020, que paralisou a política pública de demarcação de territórios quilombolas e criou um ambiente de perseguição de servidores públicos que atuam nessa área; e | Portaria FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES n. 57/2022, que burocratizou o procedimento de reconhecimento de comunidades quilombolas, sem qualquer escuta dos impactados. Valorizar lideranças cujo legado foi negado | Sugere-se a edição de despacho do Presidente da República que oriente a Fundação Cultural Palmares a revisar a Portaria FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES n. 189/2020, que excluiu 27 personalidades negras do rol de homenageados, tais como: Gilberto Gil, Benedita da Silva, Marina Silva, Elza Soares, Conceição Evaristo, dentre outras figuras de especial relevo.

Participação social – 12 mudanças

Retomar participação social para democratizar os espaços de poder e aumentar o controle social da gestão de recursos públicos | Proposta de revogação do Decreto n. 9759/2019, cujo teor visava a redução da participação social em todo o governo. Além disso, tendo em vista tal revogação, sugere-se que seja editado pelo Presidente da República um despacho de orientação dos Ministérios para que seja revisto o teor dos seguintes atos, com elaboração de nova proposta de normatização: 

Decreto n. 9883/2019 – colegiado sobre discriminação 

Decreto n. 9887/2019 – colegiado sobre trabalho escravo 

Decreto n. 9894/2019 – colegiado sobre população em situação de rua 

Decreto n. 10.003/2019 – colegiado sobre crianças e adolescentes 

Decreto n. 10.144/2020 e Decreto n. 10.224/2020 – colegiados de meio ambiente 

Decreto n. 10.177/2019 – colegiado sobre pessoas com deficiência 

Decreto n. 10.226/2020 – colegiado sobre juventude 

Decreto n. 10.905/2021 – colegiados sobre direitos dos trabalhadores 

Portaria n. Min. Saúde 3021/2020 – povos indígenas nas instâncias da gestão da saúde 

Portaria n. MEC 577/2017 – reduziu a participação de trabalhadores no Fórum Nacional da Educação 

 Portaria nº INCRA 460/2019 – derrubar os entraves para que movimentos populares tenham acesso ao INCRA