O diagnóstico do Brasil que a equipe de transição sugere a revogação de vários atos normativos da gestão Bolsonaro, nas mais variadas áreas de governo. Indica também a “revisão de marcos regressivos nas reformas trabalhista e previdenciária”, que ocorreram antes da era bolsonarista, mas foram turbinados por ela.

“Merecem especial atenção as questões relativas à inclusão previdenciária dos cerca de 50% dos trabalhadores que não participaram do mercado formal de trabalho durante a maior parte ou de toda a sua vida laboral; que não conseguem integralizar as carências contributivas mínimas para a aposentadoria; e que não se enquadram nas exigências para o acesso ao BPC”. 

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O relatório apresentado nesta quinta-feira ao presidente Lula começa com uma conclusão contundente: “o governo Bolsonaro chega ao fim do mandato em meio a uma ameaça real de colapso dos serviços públicos”. 

“Os livros didáticos que deverão serão usados no ano letivo de 2023 ainda não começaram a ser editados; faltam remédios no Farmácia Popular; não há estoques de vacinas para o enfrentamento das novas variantes da COVID-19; faltam recursos para a compra de merenda escolar; as universidades corriam o risco de não concluir o ano letivo; não existem recursos para a Defesa Civil e a prevenção de acidentes e desastres. Quem está pagando a conta deste apagão é o povo brasileiro”. 

 

Lula anuncia Alckmin como ministro no dia em que recebe diagnóstico que mostra “herança socialmente perversa”. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

 Os trabalhos foram realizados por 32 grupos com participação de mais de 5 mil técnicos, oriundos do setor público, dos parlamentos, da academia e da sociedade civil. Na apresentação, Alckmin afirmou que as informações consolidadas pelo GT mostram que “o governo andou para trás”, nos últimos quatro anos.

“Vamos entregar esse relatório para cada deputado e senador, os que vão sair e os que vão entrar. É importante que eles comecem a trabalhar sabendo o Brasil que nos foi entregue. Porque, quando chegar em 2026, em dezembro, nós vamos entregar para eles o Brasil que nós deixamos”, afirmou Lula durante o evento de divulgação do relatório.

Esta reportagem selecionou os tópicos que são os principais alvos de cobertura da Agência Nossa, incluindo temas como Trabalho e Renda, Meio Ambiente e Previdência. Leia os trechos selecionados do relatório:

Teto de gastos furado 5 vezes  X Fome

Durante o governo Bolsonaro, sob a égide da EC 95/2016, exacerbou-se um processo de enrijecimento dos gastos reais primários, no que diz respeito ao desfinanciamento das políticas públicas de saúde, previdência e assistência social, dentre outras.

No entanto, para atender suas necessidades de sustentação política, em quatro anos o atual governo furou o teto de gastos por cinco vezes, gerando gastos no valor de cerca de R$ 800 bilhões. 

As consequências são bastante perniciosas, não apenas no que diz respeito às estruturas do Estado, mas também no que toca ao comprometimento de direitos e políticas públicas de modo geral. 

Ao final, é a própria população brasileira, em especial a parcela mais vulnerável, a que mais vem sofrendo com a ausência ou precarização dos serviços públicos. O legado dos quatro anos do governo Bolsonaro é perverso. “Ele deixa para a população o reingresso do Brasil no mapa da fome: hoje são 33,1 milhões de brasileiros que passam fome e 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país, vive com algum grau de insegurança alimentar”. 

Os cortes no orçamento da saúde para 2023 são da casa de R$ 10,47 bilhões, o que inviabiliza programas e ações estratégicas do SUS, tais como: farmácia popular, saúde indígena, e o programa HIV/AIDS. Isto sem contar a fila dos atendimentos especializados que cresceram de forma vertiginosa após a pandemia. 

Na educação,  contribuindo para ampliar a evasão escolar que cresceu com a pandemia, o governo Bolsonaro congelou durante quatro anos em R$ 0,36 centavos por aluno a parte da União para a merenda escolar.

Trabalho e renda

O governo Bolsonaro não poupou a inspeção do trabalho. Houve perda de autonomia normativa, técnica, financeira e de gestão nos últimos quatro anos. Quase metade do quadro de auditores fiscais do trabalho autorizados em lei estão vagos. E o orçamento destinado às funções de fiscalização é insuficiente para a manutenção das unidades regionais, responsáveis pelas ações de fiscalização. 

A reversão deste quadro é necessária para assegurar o enfrentamento aos descumprimentos da legislação trabalhista, a garantia de direitos de saúde e segurança no trabalho, o cumprimento das cotas de aprendizes e de pessoas com deficiência, o combate às fraudes e a todas as formas de discriminação no emprego e na ocupação, bem como o fortalecimento das políticas de prevenção e erradicação do trabalho infantil e do trabalho escravo que eram, até recentemente, referência mundial. 

Entusiasta da reforma trabalhista de 2017, o governo Bolsonaro avançou ainda mais na desmonte da legislação do trabalho, utilizando todos os instrumentos normativos à sua disposição para flexibilizar a regulação laboral e enfraquecer as entidades sindicais. Frente ao aumento do trabalho por meio de plataformas digitais, não houve qualquer iniciativa para proporcionar um mínimo de proteção trabalhista e previdenciária. Também foi abandonada a política de valorização do salário mínimo, instrumento fundamental para a elevação da renda do trabalho, a redução das desigualdades e a dinamização da economia. 

Na área de qualificação social e profissional, o quadro é de ausência completa de política. O Pronatec foi abandonado e o Programa Novos Caminhos não saiu do papel, ou se limitou a ações pontuais e discutíveis, como o Caminho Digital. Registrou-se ainda a paralisia da política de aprendizagem profissional, fundamental para a prevenção e erradicação do trabalho infantil e para a inserção profissional de jovens, praticamente zerando as oportunidades nesse âmbito.

 

Previdência Social

A Previdência Social e a Seguridade Social são um dos mais importantes mecanismos de proteção e desenvolvimento social do País. Os benefícios monetários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sustentam, direta ou indiretamente, mais de 90 milhões de brasileiros e a Seguridade é fonte de renda para cerca de 140 milhões de cidadãos. Atualmente, 78% dos idosos têm nos benefícios previdenciários e no Benefício de Prestação Continuada (BPC) uma de suas principais fontes de rendimento familiar. 

Os avanços sociais expressos na Constituição de 1988 proporcionaram a inclusão dos idosos rurais e urbanos, o combate ao êxodo rural, o apoio à agricultura familiar, a promoção da economia regional, especialmente por seu papel redistributivo nos municípios mais pobres. Reduziram também a desigualdade de renda e a situação de pobreza dos mais velhos. 

As medidas adotadas pelo Governo Federal, a partir de 2016, ameaçam essas conquistas e colocam o novo governo diante do desafio de reconstruir a Seguridade Social e a Previdência Social. Um dos principais desafios neste âmbito consiste no enfrentamento da dramática exclusão do RGPS, que se ampliou nos últimos anos. Isso requer crescimento econômico e geração de emprego com carteira assinada. 

Também é necessária a revisão dos marcos regressivos das reformas trabalhista e previdenciária, que criaram regras de acesso ao Regime Geral equivalentes ou mesmo superiores às praticadas por países desenvolvidos e que desconsideram a dramática realidade do mercado de trabalho brasileiro. 

Nesse sentido, merecem especial atenção as questões relativas à inclusão previdenciária dos cerca de 50% dos trabalhadores que não participaram do mercado formal de trabalho durante a maior parte ou de toda a sua vida laboral; que não conseguem integralizar as carências contributivas mínimas para a aposentadoria; e que não se enquadram nas exigências para o acesso ao BPC. 

Outro ponto importante diz respeito à atenção às vítimas da COVID-19 e suas famílias, que sofreram perda de renda em decorrência da pandemia. O enfrentamento adequado destes desafios remete a outro problema: a desestruturação institucional do setor, iniciada em 2016, que sob o governo Bolsonaro culminou na extinção do Ministério da Previdência e a transferência de suas atribuições para a Secretaria de Previdência do Ministério da Economia. 

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foi transferido para o extinto Ministério do Desenvolvimento Social, e, depois, para o Ministério da Economia e o Ministério do Trabalho e Previdência. A Dataprev e a perícia médica continuaram vinculadas ao Ministério da Economia. Assistiu-se também a uma política que se traduziu no represamento de direitos para a redução forçada de gastos, com graves consequências administrativas e sociais. 

Os casos mais paradigmáticos foram: a redução do quadro de servidores do INSS; o fechamento de agências físicas; a desatualização cadastral que limita a concessão automática de direitos; a precariedade do serviço de teleatendimento; a migração do atendimento presencial para canais remotos; as dificuldades com o uso dos canais online; as limitações técnicas do canal digital; e o uso de automatização na concessão de benefícios com base em protocolos imprecisos, levando a indeferimentos desnecessários. 

Os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) também sofreram mudanças em decorrência da última reforma previdenciária, a qual trouxe o risco de financeirização dos planos de benefícios e menor proteção previdenciária, com prejuízos aos servidores públicos. O novo governo terá que reorganizar as regras de funcionamento desse segmento, em sintonia com as melhorias introduzidas nos regimes próprios no período de 2003 a 2015. Também é necessária a melhoria na gestão do RPPS, com a implantação de um Sistema Integrado de Dados e do eSocial, o tratamento mais adequado da Compensação Previdenciária (COMPREV), além de outras medidas de natureza tributária, sobre normas gerais aplicáveis a todos os entes federados e acerca do Regime de Previdência Complementar do setor público – Funpresp.

Desindustralização

Como o sistema industrial moderno é altamente complexo, envolvendo cadeias de valor de centenas de atividades de comércio e serviços integrados às atividades industriais propriamente ditas, o efeito contágio de fragilidades financeiras e tecnológicas no núcleo da indústria afeta todo sistema produtivo e de inovação. 

As repercussões foram especialmente graves nos segmentos de bens de capital e serviços altamente especializados de exportação e geração de conhecimento. Foram afetadas as áreas de comércio exterior, de funding e financiamento para investimento – especialmente pela descapitalização intencional do BNDES -, de apoio à produção e serviços e de proteção sistemática à população mais vulnerável. Essas ações (ou falta de outras) dificultaram uma retomada econômica pós-pandemia ambientalmente responsável, que propiciasse empregos formais e mais bem remunerados. 

Dado o tamanho econômico do Brasil, a criação de oportunidades poderia ser facilitada pela exploração do potencial de investimentos em infraestrutura e inovação tecnológica por meio de uma ação coordenada entre os setores público-privado, principalmente em um cenário internacional que abre novas janelas de oportunidades com a propagada Indústria 4.0 e a sustentabilidade. 

Portanto, a recriação do MDIC deve ser a primeira ação concreta do novo governo para reverter o quadro no setor produtivo e na inserção externa brasileira, de maneira a impulsionar a inovação tecnológica, o aumento de produtividade e competitividade, e a promoção de uma economia verde e limpa, não apenas na indústria, mas também no comércio e serviços. A missão precípua de novo MDIC é reindustrializar Brasil e promover uma inserção internacional mais competitiva.

Energia

Na energia elétrica, a principal preocupação diz respeito à mitigação das consequências negativas da privatização da Eletrobrás sobre as tarifas do setor elétrico, em função do processo de “descotização” e da concentração de poder de mercado em uma empresa privada. Causam, igualmente, preocupação e impacto negativo sobre as tarifas as emendas inseridas na lei de privatização da Eletrobrás. 

Tornou-se obrigatória a contratação de termelétricas caras e desnecessárias, o que criou uma reserva de mercado para as pequenas centrais hidroelétricas e levou à renovação de contratos de usinas antigas, por meio do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA). Também inquieta e deve ser foco de atenção a perda por parte da União da capacidade de influenciar os rumos da Eletrobrás, apesar de continuar a ser o maior acionista da empresa. 

Na indústria de petróleo, gás e biocombustíveis, as medidas de abertura e as constantes mudanças de políticas do setor geraram uma série de distorções. De modo geral, tais medidas caminharam no sentido de reduzir a participação da Petrobras no abastecimento e no mercado de gás natural, bem como de reduzir a previsibilidade em relação às ações de descarbonização. 

Meio ambiente e Clima

O governo Bolsonaro promoveu um desmantelamento deliberado e ilegal das políticas públicas, marcos regulatórios, espaços de controle e participação social, e órgãos e instituições públicas ligadas à preservação das florestas, da biodiversidade, do patrimônio genético e da agenda climática e ambiental. 

Como consequência, as taxas de desmatamento na Amazônia e no Cerrado atingiram picos nunca vistos há 15 anos. Houve aumento de 60% do desmatamento na Amazônia durante o governo Bolsonaro, a maior alta percentual que já ocorreu em um mandato presidencial, desde o início das medições por satélite, em 1988.

Houve também graves danos à população e prejuízos de reputação do setor produtivo nacional, ocasionando a imposição de barreiras aos produtos brasileiros no comércio internacional, a restrição de acesso a crédito, a perda de credibilidade do Brasil perante o resto do mundo, além do comprometimento da soberania nacional em relação à Amazônia. As comunidades e povos tradicionais foram perseguidos ou esquecidos, em total desconhecimento acerca de sua importância para a proteção da biodiversidade brasileira e a atração de financiamentos e doações internacionais com foco em sustentabilidade ambiental e social. 

O desmonte das políticas ambientais está expresso na escassez de recursos para o setor, na falta de pessoal e de gestão competente da área. Dos R$ 4,6 trilhões de despesas previstas no orçamento de 2022, menos de R$ 3 bilhões foram utilizados para políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e de instituições vinculadas à pasta. 

O Fundo Amazônia conta hoje com mais de R$ 3,3 bilhões paralisados, conforme alerta do STF e de relatórios da sociedade civil. O quadro de servidores do IBAMA, ICMBio, SFB e MMA encontra-se com 2.103 cargos existentes vagos. Enquanto o IBAMA tinha 1.800 servidores atuando na fiscalização ambiental em 2008, agora são apenas cerca de 700, nem todos em campo. Houve efetivo aparelhamento e ocupação de cargos gerenciais e de direção sem capacidade técnica e política de atuação na área de proteção e gestão ambiental. 

São contundentes os casos de perseguição e assédio aos servidores dos órgãos. Apenas 0,4% do Cadastro Ambiental Rural foi validado, o que compromete a implementação do Código Florestal. Além disso, o CAR não registra informações essenciais sobre a situação ambiental das propriedades, conforme alertado pelo TCU. Para completar, o sistema de lavratura de autos eletrônicos foi desmontado e os processos tramitando em papel. Vale destacar também as medidas deliberadas para aumentar a impunidade para criminosos ambientais. 

O desmonte das políticas ambientais foi reforçado com o esvaziamento da agenda ambiental por meio da transferência de estruturas e órgãos vinculados ao MMA a outros ministérios e pela desestruturação da governança colegiada e aguda restrição à participação social. A criação de Unidades de Conservação foi paralisada no nível federal. 

Como se não bastasse, os anúncios do governo de retificação, cancelamento e mudança de categoria das UCs já existentes incentivaram a invasão e a destruição de muitas delas. O desmatamento incentivado pelo Governo se traduz em redução significativa da rica biodiversidade, bem como na queda dos níveis de captura de carbono nas contas do inventário nacional de gases de efeito estufa. O Brasil perdeu seu protagonismo na agenda internacional sobre clima, florestas, biodiversidade, povos indígenas e populações tradicionais, água, Amazônia, oceano, energia limpa e descarbonização das cadeias produtivas. 

Precisamos voltar a ocupar assento privilegiado e credibilidade na discussão global sobre as questões socioambientais. Agora, o grande desafio é reverter o cenário deixado pelo governo Bolsonaro. 

A transição para a economia de baixo carbono é entendida como uma vantagem competitiva para o País, que tem condições de gerar negócios, produtos e serviços com menores emissões de carbono, além de oferecer soluções para as necessidades de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Nosso desafio é o da reconstrução do desmonte das instituições e o reencontro do País com seu futuro como potência ambiental.