Vinte e dois trabalhadores venezuelanos e um haitiano foram resgatados de um esquema de trabalho em condições análogas à escravidão envolvendo a maior  cervejaria do mundo e a terceira maior. Ambev e Heineken foram autuadas em uma operação da Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo em 2021.

Auditores fiscais do trabalho constataram que a transportadora Sider, contratada pelas duas cervejarias para serviços de transporte, submeteu os trabalhadores a jornadas de até 60 dias seguidos, sem descanso, sem alojamento, nem banheiro, tampouco água potável. Os trabalhadores tiveram que dormir nos próprios caminhões, apesar de terem sido arregimentados sob promessa de moradia, em Boa Vista, Roraima.

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Segundo o relatório de fiscalização para erradicação do trabalho escravo da Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, os trabalhadores também sofreram descontos nos salários para pagamentos de dívidas, prática comum do que se classifica hoje de escravidão moderna. O relatório responsabiliza as três empresas pelas condições degradantes dos trabalhadores. 

A transportadora Sider, diretamente responsável por submeter o trabalhadores às condições análogas a de escravidão, foi incluída na última lista suja do trabalho escravo, atualizada em outubro.

A Heineken também entrou no último cadastro de empregadores. Mas a Ambev, não.

“Reconhecemos a importância da política pública”. Heineken não teria apresentado defesa na inclusão na lista suja. Foto: Divulgação

“Os delitos das duas cervejarias são praticamente os mesmos. A diferença é que a Heineken não apresentou defesa, e seu processo foi mais rápido”, afirmou à Agência Nossa uma fonte que acompanha o caso.

São vários os motivos pelos quais empresas mesmo que autuadas não constem da lista suja. O prazo para ficar na lista é de dois anos. Outro motivo é que algumas conseguem na Justiça provar que não devem constar do cadastro. empresas que fazem acordos também podem ser poupadas. E também há empresas autuadas que não aparecem neste cadastro porque o trâmite administrativo ainda não acabou. Quando a empresa é autuada, ela é notificada do auto de infração e tem a opção de apresentar defesa.

O processo administrativo da Ambev não teria sido concluído, então a empresa não foi para a lista suja. 

E a Heineken, que não apresentou defesa segundo a fonte ouvida pela Agência Nossa, teve seu processo administrativo concluído e pôde ser incluída na lista suja.

A ironia é que a Heineken tinha menos serviços contratados da Sider do que a Ambev, segundo o relatório de fiscalização.

De janeiro de 2020 a fevereiro de 2021 “a composição do faturamento bruto da transportadora, analisada a partir de todos os serviços de transporte realizados e formalizados nos respectivos CTEs emitidos ficou da seguinte forma: 65% ambev, 17% Heineken, 18% demais empresas, pulverizadas, divididas em 20 tomadoras de serviço distintas”, cita o relatório analisado por esta reportagem.

Procurada pela reportagem, a Heineken confirma que a inclusão na lista se deu a partir da conclusão do processo administrativo e, lembra que, com base na portaria, esse é um procedimento automático. 

“Reconhecemos a importância do instrumento como política pública … Embora não tenhamos acesso aos ritos administrativos da Ambev e da Sider, entendemos que trata-se da mesma questão e que o desfecho pode sim seguir o mesmo caminho”.

Já a Ambev, em resposta à Agência Nossa, elencou desde o ocorrido, em 2021, uma série de “iniciativas e mudanças para evitar que algo do tipo aconteça novamente” com algum de seus fornecedores. Veja a seguir a resposta da cervejaria na íntegra:

“A Ambev acredita no trabalho decente para todos e todas e a sua proteção e promoção seguem sendo uma das prioridades do nosso negócio e parte fundamental da nossa trajetória. Desde que tomamos ciência do caso, em 2021, consultamos especialistas e revimos todos os nossos processos para irmos além do que já fazíamos na auditoria e controle dos nossos fornecedores. O grande foco desse trabalho foi o cuidado na gestão das pessoas que trabalham para esses empregadores e na fiscalização e monitoramento das obrigações trabalhistas. A partir disso, implementamos uma série de iniciativas e mudanças para evitar que algo do tipo aconteça novamente com algum fornecedor parceiro nosso. Como por exemplo: 

– Criamos o “plano de monitoramento de transporte logístico”, onde mensalmente 100% das transportadoras parceiras da Ambev são auditadas, inclusive de forma presencial, por uma consultoria externa que verifica o cumprimento das obrigações trabalhistas, previdenciárias e de condições de trabalho das empresas. Relatórios são gerados e apontam os pontos de melhorias e ajustes necessários. 

– Implementamos uma ferramenta robusta para homologação de todos os novos fornecedores, que garante a checagem de histórico e análise de itens como: autuações trabalhistas, ambientais, infrações tributárias, financeiras e documentações pendentes. Se algum item não é atendido, o fornecedor não entra na nossa cadeia.

– Incluímos nos nossos Programas de Excelência, que, em visitas presenciais e auditadas pelo país, verificam a qualidade dos processos nas nossas operações e as condições de trabalho dos motoristas das transportadoras parceiras.

– Fizemos uma campanha de comunicação para todos os motoristas das transportadoras parceiras, nas nossas unidades e nos caminhões, divulgando e disponibilizando o canal de ouvidoria da Ambev para qualquer tipo de denúncia

– Passamos a reconhecer as transportadoras parceiras com as melhores práticas trabalhistas

Qualquer descumprimento das exigências dessas iniciativas, por qualquer fornecedor, pode gerar sanções e medidas disciplinares, inclusive o rompimento do contrato e a denúncia do caso aos órgãos competentes.

Veja também a resposta integral da Heineken sobre a inclusão na lista

Gostaríamos de esclarecer que a decisão é decorrente de um caso de 2021, quando nós, e uma grande cervejaria do mercado nacional, fomos surpreendidos por uma fiscalização do Ministério do Trabalho que indicava infrações trabalhistas inaceitáveis cometidas por parte de uma de nossas prestadoras de serviços, a Transportadora Sider. Na ocasião, que nos deixou perplexos, nos mobilizamos para prestar todo apoio aos trabalhadores envolvidos e para garantir que todos os seus direitos fundamentais fossem reestabelecidos prontamente. Além disso, asseguramos as medidas necessárias junto à transportadora, que não faz mais parte do nosso quadro de fornecedores.

Esse caso nos trouxe muitos aprendizados. Somos uma empresa que vive os valores de Respeito e Cuidado e, dessa forma, defendemos os direitos humanos e fundamentais dos trabalhadores, sejam eles próprios ou prestadores de serviço. Seguimos políticas e processos rigorosos juntos aos nossos parceiros, mas, a partir desse caso, compreendemos a necessidade de avançar ainda mais nessa agenda e na checagem do cumprimento das regras presentes em nosso Código de Conduta.

Entre as iniciativas, desenvolvemos uma plataforma robusta de controle de terceirização, que prevê o recebimento mensal de toda a documentação que comprova o bom andamento e cumprimento dos requisitos previstos em contrato, especialmente no que diz respeito a direitos humanos. Especificamente para motoristas de caminhão, investimos mais de R$ 20 milhões na construção de espaços dedicados dentro de nossas cervejarias para que possam aguardar pela entrada e saída de carregamento em instalações com áreas de convivência, vestiário com chuveiro e restaurante. 

Globalmente, a HEINEKEN segue os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos e as Diretrizes da OCDE para multinacionais. Nosso Código de Conduta Empresarial, a Política de Direitos Humanos e o Código de Fornecedores orientam a forma como avaliamos, compreendemos, evitamos e abordamos os riscos relacionados com os direitos humanos em todo o mundo. Em 2022, a HEINEKEN lançou um controle interno autônomo de Direitos Humanos (conhecido como HeiRule) para que todos os países operacionais da companhia autoavaliem seus padrões e implementem mais responsabilização pelo cumprimento da nossa Política de Direitos Humanos. Recentemente, a HEINEKEN também atualizou o seu guia global de implementação da política de direitos humanos, que fornece conselhos práticos sobre como colocá-la em prática. Essas diretrizes são publicadas no site da empresa.