Reconhecida internacionalmente como potente arma contra a escravidão contemporânea no Brasil, a lista suja do trabalho escravo completa vinte anos no próximo dia 23. Desde a sua implementação, mais de 54,4 mil trabalhadores foram resgatados. O cadastro chegou a ser proibido na gestão do ex-presidente Michel Temer, mas voltou um ano depois. 

Desde então, ao menos 40 empresas autuadas conseguiram ficar fora da lista suja por decisões judiciais, mostra estudo assinado por Maurício Krespky, auditor fiscal do Trabalho que esteve por anos à frente das fiscalizações. O trabalho também é da professora Lívia Mendes, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG. O estudo não cita nomes de empresas, mas a Agência Nossa foi atrás.

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A MRV Construtora, autuada pela fiscalização do trabalho em empreendimentos em   Bauru, Americana (SP), Goiânia (GO), Curitiba (PR), Contagem (MG), Macaé (RJ), São Leopoldo e Porto Alegre (RS) de 2011 a 2021, conseguiu ter seu nome excluído da lista tanto por via judicial quanto por acordo junto à União.

A construtora obteve liminares excluindo-a da lista até que, em 2021, foram revogadas. Mas no ano seguinte a empresa conseguiu realizar um acordo com a União, representada pela Advocacia Geral (AGU), pelo Ministério do Trabalho e pela pasta que na época representava os Direitos Humanos. No termo, a empresa se compromete a promover trabalho decente, realizar pagamentos indenizatórios a trabalhadores envolvidos, bem como ressarcir a União por custos de operações fiscais.

No termo, contudo, a MRV não reconhece envolvimento com trabalho análogo à escravidão. A empresa se compromete a monitorar prestadores de serviços, incluindo cláusulas preventivas de obrigações trabalhistas e de direitos humanos. 

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A Arcelor Mittal Bioflorestas também conseguiu decisão judicial e ficou de fora da lista suja após ser autuada. A fiscalização do trabalho autuou a empresa em 2017 ao que classificou de infrações trabalhistas relacionadas a 40 empregados pela empresa JS Comércio de Carvão e Moinho. 

A companhia entrou na Justiça com ação anulatória e conseguiu liminar que “obstou sua inclusão no Cadastro de Empregadores” em 2019. Um ano depois, em 2020, a empresa obteve sentença anulando dois autos de infração. Em outubro de 2022, a empresa fez acordo com a União, registrado por documento que cita ainda outros autos de infração. 

A Rumo Malha Paulista obteve também medida liminar para ter seu nome retirado do cadastro, e posteriormente conseguiu confirmação da decisão por instância superior. Operação da fiscalização  do trabalho em 2010 resultou na autuação da América Latina Logística Malha Paulista com o envolvimento de 51 trabalhadores. O evento levou à inclusão do nome da Rumo na lista, como sucessora.

Acordos com a União

Assim como MRV e Arcelor Mittal Bioflorestas, a Rumo fez acordo com a União,  homologado pela Justiça. Realizados no segundo semestre do ano passado, final do governo Bolsonaro, esses acordos determinaram à MRV Construtora, Arcelor Mittal Bioflorestas e Rumo Malha Paulista que não integrassem o cadastro, conforme apurou a Agência Nossa.

Procurada por esta reportagem, a assessoria de imprensa da empresa informou que, com a assinatura do acordo com a AGU, em outubro de 2022, “a Rumo vem implementando um rígido programa de monitoramento continuado (conformidade trabalhista) que tem como objetivo aprimorar e aplicar as melhores práticas na gestão de temas trabalhistas e de direitos humanos”.

A empresa explica na resposta enviada à Agência Nossa que o acordo estabeleceu condicionantes para a extinção de ação judicial relacionada a uma situação ocorrida em 2010, quando uma prestadora de serviços teria praticado irregularidades trabalhistas na execução de serviços de engenharia para a antiga ALL.

O acordo, segundo a empresa, “fortalece as práticas e controles da empresa para a promoção de um ambiente seguro aos seus colaboradores e prestadores de serviços”.

O programa se aplica tanto ao seu quadro de empregados, quanto aos prestadores de serviços contratados, exigindo que as práticas de promoção do trabalho decente sejam replicadas a esses trabalhadores em seus negócios, acrescenta a Rumo.

Governo prepara portaria para aprimorar fiscalização

“Há muita dificuldade hoje em fiscalizar acordos (…)  O foco do trabalho no futuro vai ser em programas muito estruturados para monitoramento da cadeia de valor e para responsabilização da cadeia de valor”, afirmou à Agência Nossa uma fonte com conhecimento do assunto.

Segundo a fonte, o governo federal prepara uma nova portaria para aprimorar  mecanismos de fiscalização das cadeias produtivas. 

Mas, para outra fonte que acompanha o combate à escravidão contemporânea no Brasil, a criação de uma nova portaria, se tiver como objetivo a fiscalização de acordos, deve ser vista com cautela, pois poderá fortalecer a prática de acordos entre União e empresas autuadas, esvaziando a lista suja – o que é ruim na sua opinião.

Canteiro de obras da MRV. Flagrada várias vezes, construtora conseguiu decisões favoráveis e fez acordo com governo em 2022. Foto: MTE

Na mesma linha de casos complexos que envolvem cadeias produtivas, a JBS Aves entrou com ação judicial contra a União para anular dois autos de infração relacionados a condições degradantes por trabalhadores de uma prestadora de serviços do seu segmento. O frigorífico alegou principalmente a ausência de responsabilidade “sobre as supostas irregularidades apuradas”. 

Na ação, o argumento de que a empresa DI Serviços de Carga e Descarga era a única e real empregadora dos trabalhadores encontrados e que sequer esta era sua contratada diretamente. A operação ocorreu em 2015 no município de Nova Veneza (SC) e culminou com a inclusão da JBS Aves na lista suja dois anos depois.

A decisão de 2019 determinou a anulação dos dois autos de infração, a exclusão da lista suja e a devolução, pela União, dos valores pagos a título de multas relativas aos autos de infrações anulados.

Procurada pela nossa reportagem, a JBS Aves afirma, por meio da assessoria de imprensa, que “foi incluída equivocadamente na “lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em outubro de 2017 e excluída logo em seguida, após decisão judicial (…).

“As empresas grandes, muitas vezes, têm cadeias produtivas muito complexas, envolvendo diversos intermediários. Por isso nem sempre é fácil responsabilizá-las diretamente pelo trabalho escravo. Mas é fundamental que essas empresas adotem medidas de devida diligência para evitar más práticas trabalhistas por parte de seus fornecedores. Elas têm o dever legal e moral de fiscalizar aqueles de quem estão comprando”, pontua o procurador-chefe do MPT-MA Luciano Aragão Santos .

Principais argumentos para exclusão da lista

No estudo “A face oculta da lista suja do trabalho escravo”, Krespky, que também é mestrando em Applied Human Rights pela Univesidade de York, a professora Lívia Mendes, pós-doutora em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) mostram uma série de argumentos elencados nas decisões que favorecem empresas autuadas. Eles analisaram decisões proferidas a partir da volta da publicação da lista suja, março de 2017, até o período em que iniciaram as análises, março de 2022.

O motivo mais frequente para a exclusão da lista suja, presente em 43% das decisões judiciais, é a de que a inclusão na lista pode causar ao empregador prejuízos financeiros, já que os bancos e instituições financeiras restringem crédito bancário para quem está na lista.  

Em 25% das decisões, magistrados citam e acolhem o fato de haver termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho como fundamento suficiente para a retirada do nome da lista. Em  15% delas, juízes citam o fato de não haver reincidência como demonstração de boa-fé da empresa apta a gerar sua exclusão do Cadastro. 

Há ainda 10% de decisões judiciais que negam haver condições degradantes. Em alguns casos sustentam que as infrações trabalhistas verificadas nos autos são inerentes ao tipo de trabalho. Segundo os autores, a argumentação relativiza o conceito de condições degradantes e, até mesmo, “a concepção da dignidade da pessoa humana”. 

Dez por cento das decisões judiciais que excluem empresas da lista suja  fundamentam a inexistência de vínculo empregatício e a licitude da terceirização como justificativa da retirada do nome do empregador da lista, segundo o estudo.

Outra lista 

“Dentre os quarenta empregadores que conseguiram ter seus nomes excluídos da Lista Suja no período analisado, quinze foram reincluídos por outras decisões judiciais ou pela análise do mérito de processos nos quais foi concedida segurança, ou seja, 38% dos nomes que uma vez conseguiram sair do Cadastro, voltaram posteriormente. Desses quinze nomes, apenas três ainda permaneciam na Lista em abril de 2022. 

Os demais conseguiram ser excluídos ou por meio de uma segunda decisão ou por meio de acordo com a União homologado pela justiça, ou foram deslocados para uma relação em separado que, embora se encontre no mesmo documento, fica topicamente abaixo do Cadastro de Empregadores”.

O artigo 149 do Código Penal estabelece quatro hipóteses de trabalho em condições análogas à de escravo: servidão por dívidas, trabalho forçado, condições degradantes de trabalho e submissão a jornadas exaustivas.

Como funciona e em que se baseia a lista suja

O Cadastro de Empregadores é atualizado semestralmente pela Inspeção do Trabalho, por meio da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo (DETRAE), unidade responsável por sua organização e publicação. Além das atualizações semestrais ordinárias, o Cadastro pode ter atualizações extraordinárias para inclusão ou exclusão de nomes da relação. A última foi atualizada em outubro, e o resgate de trabalhadores foi recorde.

Operações de fiscalização do trabalho resgataram 54 mil trabalhadores de trabalho escravo contemporânea nos 20 anos de lista suja. Foto: Divulgação

A Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4/2016 estabelece em seu artigo 3º que cada nome inserido no Cadastro permanecerá por, no máximo, dois anos, contados a partir da data de publicação. Assim, muitas empresas que já figuraram na lista suja saíram naturalmente, como defende um dos combatentes da escravidão moderna: “O objetivo da lista suja não é marcar o empregador por toda a vida, mas sim  dar publicidade durante período necessário para ele mudar sua má conduta”, diz um defensor da regra que fixa o prazo máximo.

Apenas a versão mais atualizada do Cadastro é disponível na internet. As demais versões ficam disponíveis para consulta pública, mas devem ser solicitadas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Respostas

Para realizar esta reportagem, a Agência Nossa procurou todas as empresas citadas. Não localizamos e-mails diretos das empresas  DI Serviços de Carga e Descarga, América Latina e Logística Malha Paulista, mas enviamos mensagem para os contatos vinculados a seus respectivos números de CNPJ. 

Veja a resposta da Rumo Malha Paulista:

Em outubro de 2022, a Rumo Malha Paulista assinou um acordo com a Advocacia-Geral da União (AGU), que fortalece as práticas e controles da empresa para a promoção de um ambiente seguro aos seus colaboradores e prestadores de serviços.

Este acordo estabeleceu condicionantes para a extinção de ação judicial relacionada a uma situação ocorrida em 2010, quando uma prestadora de serviços teria praticado irregularidades trabalhistas na execução de serviços de engenharia para a antiga ALL.

Com a assinatura do acordo, a Rumo vem implementando um rígido programa de monitoramento continuado (conformidade trabalhista) que tem como objetivo aprimorar e aplicar as melhores práticas na gestão de temas trabalhistas e de direitos humanos.

O programa se aplica tanto ao seu quadro de empregados, quanto aos prestadores de serviços contratados, exigindo assim que as práticas de promoção do trabalho decente sejam replicadas a esses trabalhadores em seus negócios.

Rumo também se comprometeu com investimentos em projetos sociais voltados para pessoas em condições de vulnerabilidade, além de programas de capacitação para este mesmo público, em linha com as ações em ESG praticadas pela Companhia, cujas atividades já tiveram inicio.

Resposta da JBS Aves na íntegra:

A JBS Aves foi incluída equivocadamente na “lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em outubro de 2017 e excluída logo em seguida, após decisão judicial que comprovou que a inscrição foi indevida.

Texto atualizado algumas horas após a publicação da matéria com resposta da JBS Aves