Em 2023, o Brasil  chegou à marca de 473 empregadores cadastrados na lista suja do trabalho análogo a escravidão. A lista, que foi divulgada dia 5 de outubro, teve a adição de 132 novos nomes em comparação a última publicação. Assim como o aumento de empregadores, houve também o crescimento de resgates. Até o momento  2.592 pessoas foram resgatadas desses trabalhos em 2023, o que já superou os 2.587 resgatados de todo o ano passado, de acordo com o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Matheus Viana. 

Fatores como a aceleração dos trâmites administrativos, a digitalização de processos, a maior eficiência de políticas públicas após a alternância de poder e a retomada econômica pós pandemia foram aumentaram os flagrantes de trabalho análogos a escravidão, revelou o auditor fiscal em entrevista exclusiva à Agência Nossa. 

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“Nunca se falou tanto de trabalho escravo. Nunca foi tão normal ou tão possível pra um trabalhador chegar em casa, ligar um jornal, escutar uma rádio e ter uma reportagem sobre trabalho escravo, falando de trabalho escravo. Ele passa a entender o que é, ele passa a entender o conceito, ele passa a desvincular na mente dele o trabalho escravo contemporâneo da imagem do trabalho escravo histórico e entender que não, isso é um fenômeno de hoje e que ele funciona dessa forma”, disse Matheus. Veja a seguir a entrevista na íntegra.

Matheus Viana: “Nunca se falou tanto de trabalho escravo”. Valter Campanato/ Agência Brasil

 

Agência Nossa: Por que a lista suja veio bem maior nesta última atualização? Houve represamento dos anos anteriores?

Matheus Viana:  Tivemos vários prazos que foram atrasados. No cadastro de empregadores (lista suja), a empresa só pode constar depois que se esgotam todas as instâncias  recursais administrativas, o processo administrativo. Então depois que a gente tem uma decisão administrativa e irrecorrível, aquele empregador sim estará apto para entrar no cadastro.

Acontece que durante a pandemia a gente realmente teve um atraso (…). Com a retomada dos prazos processuais, regulados, após a pandemia, tivemos um certo represamento.

Além disso, tivemos uma questão de celeridade processual administrativa. Isso tá acompanhado da questão da informatização. Até poucos anos atrás, os processos dos autos administrativos na instituição do trabalho ainda eram processos físicos, então a gente hoje já tem diversos processos que são eletrônicos, o que agiliza a questão do julgamento dos recursos, dos encaminhamentos para as instâncias superiores. 

Tanto é que esse ano, nessa atualização agora do dia 5 de outubro, nós tivemos mais de 20 empregadores de flagrante de 2023, algo que era muito incomum. 

Além da digitalização e da retomada dos prazos dos processos administrativos, houve também aumento dos casos de resgate, efetivamente?

Agora em 2023, a gente já ultrapassou, nesse mês de outubro, o número de resgatados de 2022, completo. Informalmente, a gente vai ter mais, porque a gente tem uma ‘delay’ de processamento de dados. Mas hoje a gente já tem 2 .592 trabalhadores resgatados em 2023. Em 2022, no ano total, a gente fechou com 2.587. Então a gente já superou.

O aumento de pessoas resgatadas tem a ver com o momento da economia e a volta da fome?

É bem consensual, entre alguns experts na política pública de trabalho escravo, o momento da retomada econômica é muito sensível. Às vezes até mais do que o momento propriamente da economia aquecida. Porque quando você tá num período de pós -pandemia e a gente sai desse período, volta para um momento de reaquecimento da economia. O Brasil está disparando em relação a isso, prometendo agora ultrapassar o Canadá, com uma das melhores economias do mundo. Expectativas do PIB ultrapassando as previsões. 

Então a gente tá realmente num momento de retomada, de reaquecimento da economia muito importante nos últimos anos. Principalmente com o encerramento da pandemia da Covid -19. E esse momento é um momento muito sensível na situação de trabalho escravo. Porque é um momento onde você tem saltos de necessidade de utilização de mão de obra. E esse salto, geralmente, ele não é feito de uma forma programada, pensada e muito menos voltada pro trabalhador.

Então é muito comum, por exemplo, um fazendeiro que vinha trabalhando ali no período da pandemia, estava em baixa, teve um reaquecimento em 2022 e ele precisou, na colheita do gênero agrícola dele, utilizar 50 trabalhadores. Com esse cenário de reaquecimento, de retomada, esse ano ele precisou de 150 trabalhadores. E esse salto, ele se programou para uma estrutura tal, ele tinha banheiro, condições, instalações sanitárias, para aqueles 50.

Como os auditores fiscais estão lidando com esse aumento da demanda de fiscalizações? 

 (A gente) Vem trabalhando, atuando firmemente apesar das limitações de recursos. Hoje o nosso quadro é o menor quadro de auditores fiscais do trabalho desde a criação da carreira. Vai ser resolvido nesse governo. Já temos autorização para a contratação de 900 auditores fiscais do trabalho. O maior concurso da história para recompor o nosso quadro no ano que vem. Mas hoje nós passamos por uma situação de limitação.

Como funciona a política pública contra o trabalho análogo à escravidão?

É um tripé no meu entendimento. Tem o trabalho da inspeção do trabalho, o trabalho dos auditores fiscais do trabalho e da política pública de combate ao trabalho escravo do Brasil articulado como um todo. […] E se batemos esses recordes é porque, na questão de planejamento de organização das forças internas e alocação de recursos, o combate ao trabalho escravo é tratado com absoluta prioridade. Então isso aparece e se reflete nos números também. E a terceira ponta desse tripé é realmente a sociedade falando mais de trabalho escravo, entendendo o conceito de trabalho escravo.

Nunca se falou tanto de trabalho escravo. Nunca foi tão normal ou tão possível para um trabalhador chegar em casa, ligar um jornal, escutar uma rádio e ter uma reportagem sobre trabalho escravo, falando de trabalho escravo. Ele passa a entender o que é, ele passa a entender o conceito, ele passa a desvincular na mente dele o trabalho escravo contemporâneo da imagem do trabalho escravo histórico e entender que não, isso é um fenômeno de hoje e que ele funciona dessa forma.

Ele passa a olhar e fala: “não, eu posso estar passando por isso, eu acho que eu estou nessa situação”. Então isso reflete no aumento muito significativo do número de denúncias. É um processo de educação social mesmo. 

Colaboraram nesta entrevista Cristiane Crelier e Sabrina Lorenzi