Em meados de novembro, em meio à onda de calor que atingiu o estado do Rio, moradores de bairros da Zona Norte como Penha, Pilares e Brás de Pina ficaram dias sem água. Semanas antes, durante outra onda de calor, moradores do bairro de Santíssimo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, amargaram nove dias desabastecidos. Moradores de Boaçu, na cidade de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, chegaram a ficar mais de um mês sem água. No município de Maricá, no bairro Marquês moradores ficaram na mesma situação durante três semanas em meio ao calorão. Na mesma cidade, no bairro de Ubatiba, a falta d’água persistiu por mais de um mês.
Não se pode afirmar que todos esses casos têm relação com as mudanças do clima; alguns refletem problemas de infraestrutura, outros sim têm relação com a maior demanda de água provocada pelo calor. As mudanças climáticas seguem em ritmo acelerado. Estamos 1,4°C acima da média global de temperatura de 1850 e o Painel Intergovernamental das Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão das Nações Unidas que avalia a ciência relacionada com as alterações climáticas, alerta que, no atual ritmo de emissões de gases-estufa, chegaremos ao fim do século ou até antes a uma elevação de 4°C.
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“Já estamos sentindo os efeitos das mudanças climáticas. Por exemplo, enquanto o Sul do Brasil sofre com enxurradas, Manaus passa pela seca mais severa da história”, ressalta Luana Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil. Ela explica que esse movimento de chuvas no lugar errado e na hora errada não só prejudica a reciclagem dos mananciais, mas também o planejamento de prevenção para os eventos extremos, inclusive em relação ao abastecimento de água.
Extremos, como as ondas de calor que tivemos recentemente, eram previstos apenas para 2027. Estudos da década passada sobre o Rio alertavam para estas ondas de calor e vulnerabilidades como desabastecimento de água, como o Plano de Adaptação Climática do Rio de Janeiro, em 2018.
“Dias quentes consecutivos tenderão a aumentar significativamente, assim como a duração das ondas de calor, até 2070. Redução estatisticamente significativa poderá ocorrer com relação à precipitação total anual e o acumulado de chuvas em um dia”, alerta a pesquisa.
Entre as diversas consequências do aquecimento global está a insegurança hídrica, já que um dos principais efeitos dos eventos extremos é a má distribuição de chuvas. E os estudos mostram que o Rio de Janeiro é um dos estados brasileiros mais vulneráveis às mudanças climáticas. Além de ser famoso por suas altas temperaturas, tem uma situação hídrica pouco confortável e muitos habitantes em situação de vulnerabilidade social.
A Rede de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Urbanas, que reúne 600 pesquisadores, entre eles, o núcleo latino-americano liderado pela Fiocruz e Coppe-UFRJ alertou em 2015 para o rápido aquecimento do Rio e arredores em decorrência das mudanças climáticas. E previu naquela época o aumento de um grau de temperatura na região num curto período de um ano. Neste ano, a média foi de um aumento de 5 graus na temperatura, com fortes ondas de calor nas últimas semanas.
Um fator de vulnerabilidade do sistema de abastecimento do Rio consiste na forte dependência da Bacia do rio Paraíba do Sul, que é compartilhada com os estados de São Paulo e Minas Gerais. Há ainda o problema do crescimento vertiginoso da Região Metropolitana, abastecida pelo sistema Imunana-Laranjal, cuja vazão já não dá conta da demanda.
Outra questão determinante com impacto no clima e nas fontes de água é a topográfica da cidade do Rio de Janeiro.
“A região de inserção da cidade do Rio de Janeiro apresenta elevada variabilidade espacial e temporal de elementos meteorológicos. Os maciços florestais influenciam o comportamento regional da temperatura, ventos, evaporação e nebulosidade, mas, principalmente, da precipitação. Ao alcançarem altitude da ordem de 1.000 m, condicionam a penetração da brisa marinha em direção ao interior, além de atuarem como barreira às chuvas. Restringem, assim, a disponibilidade da umidade em partes da Zona Norte e Zona Oeste, usualmente as mais quentes e secas, em franco contraste com a Zona Sul, onde a brisa marinha atua como forte elemento de arrefecimento do ar”, explicam pesquisadores
do estudo Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro , que tem a pesquisadora Denise Sousa como uma das autoras.
Chuvas intensas e estiagens
O Plano de Adaptação às Mudanças Climáticas do Estado do Rio de Janeiro também avaliou as localidades mais suscetíveis a eventos extremos. De acordo com o estudo,os máximos absolutos de períodos secos foram observados nas regiões Noroeste e Norte Fluminense, sobretudo na faixa litorânea. As regiões Serrana e da Costa Verde apresentam condições menos críticas. Os resultados indicam que haverá aumento do número de dias secos consecutivos.
Já os maiores acumulados de chuvas são verificados na Região Serrana e, os menores, nas Regiões Metropolitana, Baixadas Litorâneas, Norte e Noroeste Fluminense (proximamente ao litoral), assim como na Região Centro-Sul. O estudo prevê redução significativa e generalizada de chuvas.
“Dias quentes consecutivos tenderão a aumentar significativamente, assim como a duração das ondas de calor, até 2070. Redução estatisticamente significativa poderá ocorrer com relação à precipitação total anual e o acumulado de chuvas em um dia”, alerta a pesquisa.
Com relação à temperatura verificou-se uma redução a partir da faixa litorânea para o interior. Os menores valores estão associados à Região Serrana. Núcleos com valores mais elevados foram observados nas regiões Norte e Noroeste Fluminense, bem como na Região Metropolitana e parte das Regiões das Baixadas Litorâneas, Centro Sul Fluminense e Médio Paraíba. As regiões de inserção das serras dos Órgãos e Mantiqueira apresentaram os menores valores para este índice de extremo. Para até 2070, os modelos climáticos apontam para o aumento das ondas de calor em todas as regiões.
“No caso da Região Metropolitana, a potencial elevação da temperatura pode ser exacerbada pelo adensamento urbano em curso, seguido pela intensa impermeabilização do solo, contribuindo para a formação e intensificação de ilhas de calor”, acrescentam os pesquisadores.
Manancial concorrido
O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves destaca que a região metropolitana do Rio de Janeiro não conta com nenhum grande rio para abastecer seus mais de 12 milhões de habitantes. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro é essencialmente abastecida por dois
sistemas de abastecimento: o Sistema Leste (SIN Imunana/Laranjal) e o Sistema Oeste
(SIN Guandu/Lajes/Acari). Somente três (de dezoito) municípios metropolitanos são atendidos por sistemas isolados de abastecimento, com captações de água em mananciais superficiais locais e em outras fontes de água, principalmente em poços profundos.
“Os rios que cortam a Baía da Guanabara são rios de pequeno volume e hoje são todos poluídos. Os municípios dependem das águas do Rio Guandu e da transposição das águas do Rio Paraíba do Sul, que sede mais de 60% de suas águas para o Guandu. Porém, essa é uma fonte de água que já está no seu limite de utilização e, apesar de sua importância, não lhe damos a devida atenção para a sua preservação, permitindo que a mata de seu entorno seja devastada e que suas águas sejam poluídas com o despejo de esgoto”, assinala.
A bacia do Paraíba do Sul abastece as duas regiões de maior densidade demográfica do país: Rio de Janeiro e São Paulo. No estado do Rio de Janeiro, de seus 92 municípios, 57 estão nessa bacia hidrográfica. Sendo que o diretor secretário do Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, João Gomes de Siqueira, ressalta que, nos últimos 10 anos, ela sofreu uma redução de vazão de mais de 30% devido às mudanças climáticas.
“Em 2014 e 2019 tivemos as piores crises hídricas do Paraíba do Sul. A crise passou, mas a vazão não voltou ao normal, ainda persiste uma substancial redução de capacidade. Assim, a tendência é de uma piora exponencial da situação conforme o clima se altera”, comenta.
De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o reservatório da Bacia do Rio Paraíba do Sul atingiu no último boletim disponível (21/11/2023), 70,7% da capacidade útil de armazenamento. “O que indica uma situação muito favorável quando comparado com os últimos anos. A título de comparação, nesta mesma data em 2022, o reservatório equivalente era de 27,8% e, em 2014, era de 4,15%”, informou, em nota, o instituto.
Injustiça climática
As localidades com maior concentração de pessoas em situação econômica menos favorável costumam ser mais afetadas por problemas de abastecimento, por conta do crescimento populacional desordenado. Segundo o estudo Estratégia de Adaptação
às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro (2016), a iniquidade social e a insuficiência de políticas habitacionais são fatores que agravam a vulnerabilidade, ao induzir a população carente a ocupar áreas de risco (encostas, áreas propensas a inundações), onde, inclusive, a provisão de infraestruturas e serviços urbanos é deficitária. Por outro lado, a pesquisa salienta que a população de maior renda também ocupou áreas de risco, como as encostas, a faixa marginal de lagoas e áreas costeiras. “A diferença entre ambas as classes reside na capacidade de lidar com os perigos climáticos”.
O estado do Rio de Janeiro também é particularmente vulnerável a desastres naturais associados a eventos extremos, em decorrência de históricas e constantes alterações no espaço físico e de questões biofísicas, como o relevo montanhoso, a descaracterização de rios e córregos, o desmatamento da cobertura original de Mata Atlântica e a ocupação desordenada de sua zona costeira. De acordo com o Plano de Adaptação Climática do Rio de Janeiro, a região fica localizada em uma área de transição entre sistemas atmosféricos, o que favorece a ocorrência de eventos de chuva intensa.
Soluções a longo prazo
Algumas soluções vêm sendo apontadas para garantir mais segurança hídrica a longo prazo. Muitas delas passam pela redução de perdas.
“Atualmente, nós perdemos, entre a captação e a casa do usuário, cerca de 40% de toda a água que é produzida. No estado do Rio de Janeiro, essa perda é de 45% e, na região metropolitana do Rio, de 30,5%. O problema é que reduzir perdas é caro. É preciso substituir redes antigas, investir em programas de inteligência, melhorar os sistemas de monitoramento e de fiscalização, entre outros. Então, as empresas acabam preferindo investir em outras soluções”, afirma Luana Pretto.
“O sistema Guandu tem muito mais água do que ele precisa para abastecer a metrópole do Rio de Janeiro. Só o desperdício, daria para abastecer 5 lestes da Baía de Guanabara”, complementa João Gomes de Siqueira.
Ele diz ainda que entre os projetos apresentados ao Inea e à Secretaria de Meio Ambiente para análise de soluções a longo prazo para o abastecimento da região metropolitana do Rio consistiria quase simplesmente no aproveitamento de água captada que não é aproveitada.
“Há uma tubulação que sai de Barra do Piraí até Seropédica, no reservatório da Ponte Coberta, onde uma parte da água é usada pela população e o excedente, de quase metade, vai para o mar. A solução seria desviar a água que vai para o mar e levar para a Região Metropolitana, que atualmente é abastecida pelo sistema Imunana-laranjal, cuja capacidade é insuficiente para a crescente demanda da região e carece de um reservatório para evitar a intermitência no abastecimento”, afirma Siqueira.
Projetos previstos
A CEDAE, companhia responsável pela captação e tratamento da água no estado do Rio de Janeiro, informou à Agência Nossa que vem investindo em novas estações de tratamento para ampliar a oferta de água para a Região Metropolitana. Uma delas seria o sistema Novo Guandu, em Nova Iguaçu, com previsão de conclusão até 2026, que conta com investimentos de mais de R$ 2,5 bilhões.
“O sistema vai produzir mais 12 mil litros de água por segundo, que equivale a um milhão de caixas d’água por dia, para a Baixada Fluminense e parte da Zona Oeste do Rio. Este atuará em conjunto com o atual sistema Guandu, fornecendo, juntos, mais de 55 mil litros de água por segundo. Além de estação de tratamento de água, adutora de água tratada com 3,9 quilômetros de extensão e tronco distribuidor com 1 quilômetro, o Novo Guandu terá também o maior reservatório da Cedae, o Novo Marapicu, capaz de armazenar até 55 milhões de litros de água”, informou a CEDAE à Agência Nossa.
A empresa também disse que duas novas estações de tratamento estão em construção no sistema Acari, que abastece parte de Nova Iguaçu e Duque de Caxias. Em Duque de Caxias, deve ser concluída até 2025 a Estação de Tratamento de Água (ETA) Xerém, com investimentos de R$ 207 milhões, que vai produzir 1,3 mil l/s para os mais de 450 mil moradores da região. Já em Nova Iguaçu, a Companhia investe R$ 28 milhões na construção da ETA Tinguá, com previsão de conclusão até março de 2024. A unidade vai produzir 650 l/s para mais de 150 mil consumidores. O sistema Acari ganhará ainda uma terceira ETA, a Rio D’Ouro, em Nova Iguaçu, em fase de projeto.
“As novas estações vão dar mais estabilidade ao sistema Acari, evitando eventuais reduções da produção de água em períodos de fortes chuvas, quando o material sólido carregado para os rios – como lama e galhos – torna o tratamento mais demorado”, afirma a CEDAE.
Já a Águas do Rio, concessionária responsável pela distribuição do abastecimento na capital e outros 26 municípios fluminenses, desde 2021, disse que vem investindo na recuperação e melhoria das estruturas existentes e executando a ampliação dos sistemas.
Essas ações já teriam beneficiado, por exemplo, em torno de 540 mil pessoas, que passaram a ter o fornecimento regular de água tratada nos municípios de São Gonçalo, Itaboraí, Maricá e Tanguá. Entre estas, a empresa destaca a ampliação da Estação de Tratamento de Água (ETA) Ponta Negra e a implantação de 11 quilômetros de adutora, que teria triplicado o volume de água enviado para a região central de Maricá; a interligação de uma adutora em Cachoeira de Macacu para Itaboraí levando mais água para a cidade; a implementação de um sistema de reuso na ETA Manilha, diminuindo a perda de água no processo de tratamento; a revitalização e reativação de dois reservatórios em São Gonçalo (Tribobó e Trindade) e a substituição de equipamentos e revitalização da ETA Tanguá.
A concessionária também disse que possui em curso um programa de combate às perdas de água nos sistemas de distribuição.
“Atualmente, 65% em média da água tratada se perde antes de chegar às torneiras dos imóveis, com vazamentos na rede de distribuição ou furto em ligações irregulares, os famosos ‘gatos’. A meta da concessionária é reduzir esse índice para 25% nos próximos anos. O município de São Gonçalo, por exemplo, está acima da média e perde em torno de 70% da água tratada. A empresa vem atuando fortemente na localização e reparo dos vazamentos, como ocorreu no bairro Mutondo, onde uma antiga tubulação, de 1897, desperdiçava por dia em torno de 4 milhões de litros de água potável, volume suficiente para abastecer 20 mil pessoas”, relata a Águas do Rio, acrescentando que esse vazamento, segundo os moradores, existia há pelo menos 60 anos e chegava a formar um lago.
“Nesse mesmo caminho, recentemente, durante a parada anual preventiva do sistema Imunana-laranjal, Águas do Rio realizou cincos intervenções no sistema de distribuição em São Gonçalo que resultaram na integração de 11 milhões de litros de água, antes desperdiçados e que agora são consumidos pela população”, afirmou em nota a empresa.
Com relação às captações de água, a concessionária diz que estudos estão sendo feitos para a busca de novas fontes, tanto superficiais como subterrâneas, com o objetivo de garantir a segurança hídrica nos períodos de escassez. E citou como exemplo um protocolo de intenções assinado entre a Prefeitura de Maricá com a Águas do Rio para o estudo da dessalinização da água do mar e o contrato para fornecimento de água de reuso para o Gaslub, localizado em Itaboraí, a partir do tratamento de efluentes da Estação de Tratamento de Esgoto de São Gonçalo, operada pela concessionária.
“Esse que é o maior projeto de reuso de água em área industrial no Brasil vai permitir que a água potável, antes utilizada em processo industrial, seja direcionada para o consumo de cerca de 600 mil moradores”, conclui.