Nas várias demonstrações de “gente como a gente”, o ex-presidente Jair Bolsonaro posou quase que como franciscano. Na sua primeira entrevista (ou uma das primeiras) já chefe do executivo, improvisou uma prancha como mesa. Foram muitas aparições com roupas simples, em estilo informal, e até lavando roupa. Por vezes comendo pão e tomando café com leite, um ícone do cidadão trabalhador.
Os dados do cartão corporativo abertos ao público nesta semana após sigilo estabelecido em seu governo reforçam esse apreço por café da manhã, pão e etc. Gastos concentrados em compras de padaria e lanchonete chamam atenção: foram pagos cerca de R$ 360 mil em uma padaria e R$ 626 mil em uma única lanchonete.
Em um único dia, em maio de 2019, o estabelecimento registrado como Padaria e Conf. Barão de Ipanema LTDA, no Rio, recebeu R$ 55 mil do cartão corporativo do ex-presidente Bolsonaro. Também em um dia, em abril de 2022, foi registrada despesa de R$ 62 mil na lanchonete Tony e Thaís, localizada em São Paulo.
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Mas tanto a padaria quanto a lanchonete já haviam recebido a visita do cartão corporativo da presidência da República.
Em 2018, uma compra de R$ 2.800 e outra de R$ 9.000 foram realizadas na padaria que tem o nome fantasia de Santa Marta Gourmet. O endereço registrado no CNPJ, é em Copacabana.
A lanchonete paulista já era queridinha do cartão corporativo desde pelo menos setembro de 2016. Deste período até o final do governo Temer, a Agência Nossa contou 135 operações num total de cerca de R$ 340,5 mil. Valor mais modesto que os gastos do presidente Bolsonaro, mas com elevada frequência.
Compras pessoais com cartão corporativo não são ilegais, porém, o recurso é disponibilizado para ações fundamentais ao governo. Também foram registrados no cartão corporativo na era Bolsonaro sorvetes no McDonalds e uma compra inusitada acima de R$ 100 mil em um restaurante que vende quentinhas em Roraima.
Quebra automática do sigilo
Os dados do cartão corporativo foram disponibilizados através da LAI (Lei de Acesso À Informação) à Agência Fiquem Sabendo em resposta a um pedido realizado em dezembro. Naquele momento, o governo não disponibilizava a informação alegando motivos de segurança.
Até o fim da gestão Bolsonaro, o argumento para o sigilo dos valores seguia um trecho da própria lei e não “sigilo de 100 anos” decretado pelo ex-presidente.
“Artigo, 24, § 2º: as informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”.
O governo federal hospedou os dados em seu repositório de informações desclassificadas no dia 6 de janeiro em resposta ao pedido da agência
Segundo o texto da LAI e as interpretações que vinham sendo dadas pelo governo federal nos últimos anos, o sigilo de gastos do cartão corporativo só vale até o fim do mandato do presidente. Após isso, a informação é, em tese, automaticamente pública, segundo a lei. Este caso não se enquadraria, em tese, como uma revisão de sigilo do governo Lula, tampouco na categoria de “100 anos de sigilo“, já que o motivo para a negativa dos gastos do cartão era baseado em outro trecho da LAI, o artigo 24 (§ 2º
Os dados são oficiais e correspondem à planilha disponibilizada pela Secretaria Geral da Presidência da República.
Os números contabilizam, ao todo, R$ 27 milhões de gastos de 2019 a 2022. O montante é bem inferior, porém, aos gastos de Lula no primeiro mandato, por exemplo. O motivo seria um menor gasto considerável com viagens, já que o presidente petista viajou por mais de 100 vezes ao exterior enquanto o governo Bolsonaro é reconhecido pelo isolamento.
Esta reportagem questionou a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) sobre eventual mudança metológica no registro de gastos do cartão corporativo, mas até o fechamento da matéria não obteve resposta. Também tentamos encontrar o ex-presidente Temer, por enquanto sem sucesso.