Responsáveis por 70% da produção de alimentos básicos, os pequenos agricultores perderam apoio de políticas públicas ao longo dos últimos anos, ao mesmo tempo em que os estoques de arroz praticamente sumiram do mercado e o dólar mais que dobrou de patamar. A consequência destes fatores é a alta nos preços de importantes itens da cesta básica — sem perspectiva de recuo — e a volta do crescimento da fome no Brasil.
Criado em 2003 no âmbito de políticas de segurança alimentar, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), considerado o principal instrumento de combate à fome no Brasil, viu seu orçamento minguar ano a ano, desde 2013.
Para este ano, o governo previa mais uma redução, mas a pandemia mudou o quadro e houve aumento dos aportes. E mesmo com valor adicional de R$ 500 milhões – estavam previstos R$ 155 milhões antes da Covid –, o alcance do programa atinge apenas 3% do universo da agricultura familiar de baixa renda, segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.
A Contag estima a partir do censo agropecuário que 2,8 milhões de famílias do campo necessitam de apoio e políticas públicas para produzir mais alimentos e para se alimentar.
Nesta semana, pesquisa do IBGE revelou a volta do crescimento da fome no Brasil, sobretudo no campo.
“O alcance do programa é muito limitado e vem diminuindo ao longo dos anos. Sâo quatro anos de baixíssimos preços para o arroz, estoques caindo, safra atingida pela seca. Uma política de apoio efetiva, com estocagem, é fundamental para garantir o consumo interno e apoiar essas famílias”, afirma o secretário de Política Agrária da Contag, Antoninho Rovaris.
Cerca de 85 mil famílias de agricultores familiares deverão ser beneficiadas com o programa de aquisição de alimentos em 2020, segundo informa o Ministério da Cidadania. Também serão beneficiados neste ano 12,5 mil entidades e 11 milhões de famílias em vulnerabilidade social que receberão os alimentos.
“Para se ter uma ideia, trata-se de uma alta de 180,6% do número famílias contempladas no início do ano (31 mil) e de 43,6% do número de entidades contempladas (8,7 mil)”, ponderou o ministério em resposta à Agência Nossa, por e-mail.
O governo Bolsonaro deu sequência às consecutivas reduções no orçamento do programa de segurança alimentar, com orçamento de R$ 201 milhões em 2019, após os R$ 261 milhões de 2018.
Antes, Temer promoveu corte radical, reduzindo o orçamento de R$ 540 milhões em 2016 para R$ 330 milhões em 2017. Dilma iniciou a fase de cortes. Em 2015, o programa contava com um orçamento de R$ 640 milhões. O ápice dos investimentos na agricultura familiar foi em 2012, quando foram liberados R$ 839 milhões para o mesmo programa.
Naquela época, com as compras de alimentos bem mais gordas pelo governo, dos pequenos agricultores, os estoques públicos de arroz somavam cerca de um milhão de toneladas, número que recuou drasticamente desde então, até os 21,5 mil toneladas atualmente. Os dados são da Companhia de Nacional de Abastecimento (Conab).
Fome
Nesta semana, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou pesquisa que revela o aumento da fome no Brasil nos últimos anos. A insegurança alimentar grave esteve presente no lar de 10,3 milhões de pessoas ao menos em alguns momentos entre 2017 e 2018. Três milhões a mais que em 2013, quando a fome também foi mensurada pelo instituto.
A insegurança alimentar vinha diminuindo ao longo dos anos, desde 2004. A volta do crescimento foi registrada nesta pesquisa, entre 2017 e 2018.
“Quando um domicílio tem insegurança alimentar grave, há uma restrição maior de acesso aos alimentos, com uma redução da quantidade consumida para todos os moradores, inclusive crianças, quando presentes. E nesses lares pode ter ocorrido a fome, situação em que pelo menos alguém ficou o dia inteiro sem comer um alimento”, diz o responsável pela pesquisa, André Martins.
O nível de maior restrição no acesso a esses alimentos também aparece com mais frequência nos domicílios localizados na área rural do Brasil. A proporção de insegurança alimentar grave foi de 7,1%. Os preços elevados dos alimentos podem agravar o problema.
Preço elevado deve permanecer
Os aumentos no preço do arroz e da soja têm forte relação com a alta do dólar. Os produtores tendem a exportar mais produtos quando o dólar sobe, porque os preços para vender para o exterior ficam mais atrativos e acabam forçando os preços internos a subir também.
Outro fator de pressão tem sido o aumento da demanda da China e do consumo interno, pois as pessoas passaram a comer mais arroz e feijão na pandemia, comendo em casa.
Com a disparada das exportações, o óleo de soja sumiu das prateleiras dos supermercados. A soja é produzida por grandes agricultores e vendida preponderantemente no mercado internacional faz tempo. Já o arroz passou a ser exportado há apenas dois anos. Sem estoques para regular preços, com dólar alto sem previsão de ceder e limitações na produção por pequenos agricultores – os maiores produtores – a oferta não tende a aumentar tão cedo, nem os preços a recuar.
“Não há espaço para quedas bruscas de preço. O preço ficou baixo durante muito tempo, os estoques estão muito enxutos no segundo semestre. E a partir de março (do ano que vem), no período de safra, o preço não deve ficar baixo como estava um ano antes mas também não tão alto”, estima o pesquisador Lucílio Alves, do Centro de Pesquisa Aplicada (Cepea), da USP.
O câmbio 40% acima do mesmo período do ano passado, segundo ele, tem forte influência sobre os preços.
“Seria muito importante estimular uma estratégia de abastecimento popular para sobretudo as grandes cidades e as áreas periféricas dessas grandes cidades, porque as populações negras, as populações pobres estão à mercê desse aumento de preços”, afirma o professor Silvio Porto, ex-diretor da (Conab) Sílvio Porto, em entrevista ao site Brasil de Fato.