Três anos depois da Reforma Trabalhista, o isolamento social imposto pela pandemia escancarou os problemas da legislação em relação ao home office. A reforma institucionalizou o teletrabalho ao criar um espaço só para ele na CLT. Mas o texto não dá conta dos principais desafios desta nova modalidade, de acordo com especialistas ouvidos pela Agência Nossa.

Por causa da pandemia e da quarentena, o trabalho feito de casa disparou. E com isso também os processos. Dados das varas de trabalho reunidos pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) já apontam aumento de 270% nas ações envolvendo o trabalho remoto de janeiro a setembro de 2020, em relação ao mesmo período do ano anterior.

Dentre as principais demandas das ações neste ano estão as condições de trabalho (equipamento e mobiliário, reembolso de despesas e jornadas excessivas) e a redução salarial decorrente da retirada de benefícios como vale-alimentação ou adicionais de insalubridade e periculosidade, relata a procuradora do trabalho Adriane Reis de Araújo.

Mais da metade das negociações trabalhistas envolvem impactos da Covid

Além de instituir os artigos 75-A a 75-E no capítulo II-A na CLT, a reforma também alterou o art.62, excluindo o teletrabalho dos tipos de trabalho abrangidos pelo controle de jornada. Não à toa grande parte das ações judiciais envolvendo home office estão ligadas ao pagamento de horas extras. Sem controle de jornada, não se pode diferenciar tempo acordado e excessivo de trabalho.

Para o advogado e ex desembargador do trabalho José Eduardo de Resende Chaves Júnior, a reforma, que deveria modernizar a legislação, piorou a norma, mais do que inovou: “É uma norma que já nasceu ultrapassada. Com relação ao teletrabalho, o texto não tinha como ser pior”, declara.

Quanto à garantia de uma boa ergonomia, a previsão legal é de que o empregador instrua os funcionários para o bom uso dos equipamentos necessários, mas o custo da infraestrutura não entra no texto. De acordo com o advogado trabalhista Gabriel Ferreira esse é um dos pontos que faz a Reforma Trabalhista ser considerada precarizante:

“A aquisição e manutenção de equipamentos é regulada por um contrato assinado pela empresa e o trabalhador. Só que esses contratos em geral são padronizados. A empresa entrega um contrato padrão para o empregado, e ele não tem poder de negociação, como um sindicato teria, por isso acaba sendo prejudicado. No fim, a legislação não ajuda”.

Sem custas para órgãos do governo

Foi nessa brecha que o Ministério da Economia editou uma Instrução Normativa (nº 65 de 30 de julho deste ano) desonerando os órgãos e entidades vinculados ao Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (SIPEC) das custas com ergonomia dos funcionários públicos.

Conforme determina o artigo 23 da instrução, o servidor deverá “providenciar as estruturas física e tecnológica necessárias, mediante a utilização de equipamentos e mobiliários adequados e ergonômicos, assumindo, inclusive, os custos referentes à conexão à internet, à energia elétrica e ao telefone, entre outras despesas decorrentes do exercício de suas atribuições.”

A justificativa seria a redução dos gastos do poder público, uma das principais bandeiras políticas do governo.

Na tentativa de resolver alguns dos problemas, o Ministério Público do Trabalho (MPT) publicou, no início deste mês, nota técnica com orientações para a implementação de um home office saudável e seguro. O documento traça 17 orientações, dentre as quais, o respeito à jornada contratual, o direito à desconexão e a criação de uma “ética digital” no relacionamento entre empresas e empregados.

Conheça as recomendações do MPT na íntegra.

O objetivo do MPT ao fazer as recomendações é compilar diretrizes para evitar danos a trabalhadores e empresas, mas a iniciativa acabou sendo criticada por parte da comunidade jurídica, sob alegações de que estaria extrapolando seu papel de fiscalização. Em entrevista à Agência Nossa, a procuradora rebate:

“O MPT não tem poder legislativo. Nossa atuação está fundamentada no texto constitucional, que exige a defesa de direitos fundamentais e respeito à ordem jurídica. A realidade do teletrabalho é bastante anterior à reforma trabalhista. Ela foi expressamente regulamentada pela primeira vez pela Lei 12.551 de 2011. A nota técnica tem o objetivo de orientar em relação a todo esse conjunto normativo.”

Segundo ela, para solucionar a questão é indispensável a formulação de regras claras. Do contrário, a litigiosidade tende a aumentar.

Para a advogada trabalhista Priscila Quintanilha, do escritório Pedro Pamplona Advogados, o vai-e-vem de alterações da lei cria um ambiente de incerteza na adesão dos próprios empregadores aos novos contratos:

“O teletrabalho e o trabalho intermitente foram as maiores inovações contratuais de 2017, depois tentaram aprovar uma mini reforma, que era o contrato verde e amarelo, e agora as medidas provisórias emergenciais… isso traz muita insegurança jurídica para os empresários contratarem”.

Bem-estar

Por outro lado, um estudo recente do FGV Saúde aponta que os efeitos de uma má ergonomia no home office podem ir além de sintomas físicos, afetando também os estados de humor e vitalidade dos trabalhadores. Segundo a pesquisa, quase metade dos respondentes (45,63%) apresentou baixo nível de bem-estar e saúde mental.

Já a redução salarial, provocada pela retirada de benefícios e adicionais, envolve diferentes discussões. Ferreira explica que, enquanto a desobrigação de pagamento de vale-transporte é pacificada pela Lei 7418, o vale alimentação é considerado uma polêmica, e divide opiniões.

“Existem três interpretações possíveis. A primeira nega o direito, considerando que o vale-alimentação não é verba salarial. A segunda é seguida por aqueles que defendem que depende de acordo coletivo: se estiver escrito que abrange todos os empregados, esse acordo ou convenção é lei para aquela categoria; se não está escrito, tem quem entenda que o empregador pode deixar de pagar. Na minha interpretação, a lei resguarda o direito, mesmo sem constar expressamente no acordo, porque é um benefício cuja supressão configura uma alteração lesiva. Eu entendo que a empresa deve continuar pagando, até porque o empregado tem que continuar se alimentando”.

Apesar da polêmica, é inegável que o trabalho em casa proporcionou ao trabalhador mais tempo para se dedicar à família, o que deveria ser visto como fator mais importante que os problemas, segundo defendem alguns especialistas.