Atuante em questões ambientais, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) alerta para uma disputa entre estados por investimentos que vai reduzir expressivamente as exigências ambientais.
A socióloga Julianna Malerba, assessora nacional da Fase, conversou com a Agência Nossa sobre o PL que delega a autoridades e órgãos estatais as definições complementares a lei, permitindo que em cada estado e município a aplicação do licenciamento possa vir a ocorrer de forma distinta, o que , segundo ela, “seguramente, vai levar a uma corrida pela flexibilização, com as localidades diminuindo suas exigências ambientais a fim de atrair investimentos.
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Para a especialista, o impacto ambiental será muito maior entre os mais desfavorecidos, historicamente tem ocorrido.
“Se for aprovado pelo Senado, esse PL significará um passo decisivo ao desmonte de todo aparato normativo e institucional do estado de proteção ao meio ambiente, com graves repercussões sobre os direitos de forma mais ampla, porque é impossível separar meio ambiente e sociedade”. A seguir, a entrevista.
Agência Nossa: Qual o posicionamento da Fase sobre o PL que flexibiliza o licenciamento ambiental?
Julianna Malerba: A primeira coisa que precisamos considerar é que o licenciamento significa uma conquista importante da sociedade do ponto de vista do planejamento e da regulação estatal, especialmente para os grupos que sofrem diretamente os efeitos das obras e empreendimentos que causam grandes impactos ambientais. Mesmo que a gente ainda tenha críticas sobre a insuficiência do licenciamento em relação à participação efetiva dos grupos atingidos, é preciso reconhecer que o licenciamento garante algum grau de envolvimento da sociedade e de debates sobre a implementação de uma obra. E, sobretudo, ele garante a avaliação e o controle técnico sobre os possíveis impactos negativos. Portanto, o licenciamento é um mecanismo fundamental para que os interesses da coletividade, como a manutenção do meio ambiente equilibrado, a proteção dos patrimônios culturais, históricos e socioambientais sejam resguardados e protegidos dos interesses estritamente econômicos. O PL aprovado pela Câmara, no entanto, vai na contramão desse preceito. Ele representa um retrocesso gravíssimo à possibilidade de proteção de bens comuns a essa e à gerações futuras. A proposta, do ponto de vista da FASE, cria um regime geral absolutamente abrangente de exceções que são injustificáveis. O licenciamento, antes regra, passa agora a ser praticamente uma exceção para liberação de empreendimentos que causam impactos significativos.
Pode dar exemplos?
O PL, por exemplo, dispensa a obrigatoriedade de licenciamento para várias atividades que possuem enorme impacto sobre a disponibilidade hídrica onde se instalam, como é o caso das obras de implantação de sistema de tratamento de água e esgoto, de cultivos agrícolas, da pecuária extensiva, semi intensiva e intensiva. Além de prever a dispensa do licenciamento a treze categorias de empreendimentos, todas elas ligadas a lobbies poderosos no Congresso, é importante dizer, o texto ainda cria a figura do autolicenciamento que, ao lado das dispensas, elimina o controle prévio dos relevantes impactos socioambientais dos empreendimentos, desobrigando a entrega do estudo ambiental e a análise específica pelo órgão ambiental. Então a ideia de você controlar e mensurar os danos para poder avaliar a viabilidade de um empreendimento fica completamente inviabilizada. O projeto ainda delega a autoridades e órgãos estatais as definições complementares a lei, permitindo que em cada estado e município a aplicação do licenciamento possa vir a ocorrer de forma distinta, o que, seguramente, vai levar a uma corrida pela flexibilização, com as localidades diminuindo suas exigências ambientais a fim de atrair investimentos.
Caso o PL seja aceito pelo Senado e seja sancionado pelo presidente, quais seriam os impactos?
Se for aprovado pelo Senado, esse PL significará um passo decisivo ao desmonte de todo aparato normativo e institucional do estado de proteção ao meio ambiente, com graves repercussões sobre os direitos de forma mais ampla, porque é impossível separar meio ambiente e sociedade. E com consequências ainda mais graves aos grupos que são historicamente vulnerabilizados, porque sabemos que os custos da degradação ambiental não são distribuídos de forma equânime na sociedade. Ao contrário de um certo senso comum ambiental, a poluição não é democrática, não atinge a todos de maneira uniforme e não submete todos os grupos sociais aos mesmos riscos e incertezas. Os grupos que têm menos recursos políticos, financeiros e informacionais são os que sofrem de formas mais intensa os impactos da degradação e, consequentemente, da desregulação ambiental. É preciso a gente lembrar que pro mercado pouco importa os efeitos não mercantis de suas ações, mais ainda se eles recaem com mais intensidade sobre os mais despossuídos. Não é por acaso que quase 69% das pessoas que vivem nas áreas que poderão ser destruídas ou inundadas no caso de novos rompimentos de barragem em MG são negras. Isso é um dado produzido pelo PoEMAS, um grupo de pesquisa, a partir do censo do IBGE.
(…) E soma-se ainda a isso o fato de que esse projeto de lei estabelece que apenas os impactos – por exemplo – sobre terras indígenas homologadas serão consideradas num processo de licenciamento ambiental, excluindo todas as demais terras indígenas sem precisar de demarcação; o mesmo vale para os territórios quilombolas. Então, serão impostos sérios impactos sobre esses grupos sem que sequer seja devidamente avaliado ou previamente mitigado ou compensado, acentuando ainda mais a situação de injustiça ambiental que recai sobre essas populações.
Edição de Sabrina Lorenzi