A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada o texto-base da Proposta de Emenda à Constituição 15/2022. A PEC, que já foi batizada com diversos adjetivos como “Kamikaze” e “Eleitoreira”, promete diversos benefícios que põem em questão sua legitimidade constitucional, eleitoral e fiscal. Após a aprovação, foi permitido que o governo fure o teto de gastos da União, que chega a mais de R$ 41 bilhões.
Além do grande impacto nas contas públicas, há uma discussão sobre se a PEC viola a legislação eleitoral. Segundo nossas normas eleitorais, é proibida a criação de benefícios em ano de eleições. No entanto, a emenda reconhece a situação de Estado de Emergência, prevista na Constituição Federal, que valida a criação dos benefícios mesmo às vésperas das eleições. Esse “drible” nas regras eleitorais seguiu a esteira da PEC 1/22 que foi aprovada pelo Senado no final de junho.
A manobra constitucional vem sendo muito criticada pela oposição, que tem chamado a atenção para o fato de que ela acontece justamente no momento em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta engatar a campanha de reeleição a chefe do Executivo e aparece em segundo nas pesquisas de intenção de voto – consta com 36% na corrida, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que tem 44%, como levantado na pesquisa PoderData de 6 de julho.
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O governo, por sua vez, defende que a criação da medida é uma forma de lidar com a alta nos preços dos combustíveis e seu impacto na inflação dos alimentos, além de outros fatores externos, como a guerra da Ucrânia. A guerra justificaria a criação do Estado de Emergência, ponto do texto que a oposição tentou alterar sem sucesso na votação realizada na Câmara.
Até o fim deste ano, serão expandidos benefícios como o Auxílio Brasil, Alimenta-Brasil e o Vale-Gás. Juntos, devem custar cerca de R$ 27,5 bilhões. Além desses, também está prevista a criação de auxílio para caminhoneiros autônomos (R$ 1 mil) e taxistas, consumindo cerca de R$ 7,4 bilhões. Outros recursos também serão disponibilizados, como gratuidade de idosos no transporte coletivo (R$ 2,5 bilhões) e créditos para a produção de etanol (R$ 3,8 bilhões). Todos os benefícios listados no texto-base têm prazo de validade até dezembro – ou seja, exclusivamente até o final do atual mandato da presidência.
Para entender melhor o que essa PEC significa, convidamos dois especialistas: o professor Victor Leonardo Araújo, do Departamento de Economia da UFF, para destrinchar as medidas adotadas e os impactos econômicos e sociais da proposta; e o operador da bolsa de valores Jean Phillipe Teixeira, para esclarecer a reação dos investidores que atuam no Brasil. Mesmo atuando em campos tão distintos, os dois concordam que a PEC é equivocada.
Sobre a política econômica do país, o professor Araújo acredita que um dos problemas é a inconstância e até letargia do governo em construir programas sistemáticos de transferência de renda. Quando o presidente não renova o auxílio emergencial para 2022 e retorna com aumento de auxílios às vésperas das eleições, claramente, segundo ele, caracteriza uma ação de caráter oportunista-eleitoreiro.
“O que o pacote de aumento de gastos tem evidenciado é que o velho discurso de que ‘acabou o dinheiro’ não se sustenta. Não há possibilidade de estabelecer que se acabou o dinheiro quando o próprio governo é o emissor da moeda. Todas as restrições legais existem porque há normas, mas tecnicamente essas restrições não existem.
O especialista continua: “Qual é o problema do governo ampliar os seus gastos? Nenhum. O problema é o aspecto moral/ético de um governo que defende a emenda do teto de gastos o tempo inteiro e ao longo do tempo faz ‘gambiarras’ por motivações eleitoreiras. Quando o governo quer, encontra dinheiro”.
O analista da bolsa de valores Jean Phillipe Teixeira também considera que o governo está fazendo uma “gambiarra” financeira. Nas palavras dele, “o Brasil tem uma característica de querer consertar, remendar problemas estruturais com ‘puxadinhos”.
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“É legítimo que a população tenha um auxílio, isso é unânime, mas a gente vem lutando com esse tipo de política há muito tempo e, na contramão, a gente não consegue enxergar um projeto que realmente estruture o país para que cada vez menos as pessoas precisem se utilizar desse instrumento que é o Auxílio Emergencial”, afirmou.
Essa preocupação motivou o único voto contrário no pleito da PEC que tramitava em primeiro turno no Senado. Segundo o senador José Serra (PSDB), sua negativa à proposta se dava pela inconstitucionalidade da emenda e do furo proposto ao teto de gastos.
Por um outro lado, o professor Victor Leonardo Araújo voltou a elencar o funcionamento fiscal da PEC, atentando para a forma como ela é proposta, para além do seu conteúdo em si. Perguntado se o investimento social justifica o furo no teto de gastos, disse: “Justificar, justifica. A situação de enorme emergência social justifica o furo. Mas como que o governo faz esse furo? Como é a política de transferência de renda do governo Bolsonaro? Vou fazer uma comparação com o Programa Bolsa Família. É um programa premiado e reconhecido internacionalmente pela sua concepção, formulação e execução. Ele parte do cadastro único dos municípios que, por meio dos seus serviços de assistência social, identifica as famílias que se enquadram nas elegibilidades. O auxílio emergencial do Bolsonaro foi como uma ‘porteira aberta’.
Houve muita gente que precisou devolver dinheiro porque não se enquadrava nas eligibilidades. Ou seja, o que falta no governo Bolsonaro – e aí temos mais uma característica do caráter eleitoreiro desta política – é o desenho de uma política eficiente”, detalhou. Para o operador da bolsa Jean Phillipe Teixeira, do ponto de vista da bolsa de valores, o impacto da PEC é muito ruim. Ele explicou que esse tipo de atitude prejudica o ambiente de negócios:
“O mercado gosta de previsibilidade e o Brasil é, historicamente, um país que tem muito pouca previsibilidade. A gente tem uma instabilidade nos projetos muito grande. Esse investimento em países onde você tem um ambiente de negócios mais seguro, mais previsível, acaba se revertendo em benefícios para o país e, aí, a gente tem tempo hábil para fazer esse dinheiro que entra via bolsa de valores e que, a princípio, a sociedade enxerga como puramente especulativo, traga benefícios tributários, gerações de emprego, tudo que uma empresa pode gerar de valor para a sociedade”.
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Outra preocupação é a possível alta da inflação. “O investidor estrangeiro não fica olhando déficit de dívida pública. O que é que o investidor quer? Ele quer saber se terá lucratividade no país, ele quer saber se a economia cresce, quais seriam as perspectivas de lucro que existem. O investidor do mercado financeiro vai pensar a mesma coisa. O que afugenta o investidor é uma perspectiva de baixo crescimento”, acrescentou Victor Leonardo Araújo.
Araújo receia que o aumento da inflação corroa o ganho que o aumento do Auxílio Brasil de 400 para 600 reais vai gerar, num primeiro momento. O professor da UFF considera a probabilidade disso acontecer altíssima. Para ele, falta ao país um projeto para resolver isso de maneira estrutural. “Eu tenho dúvida se, no médio e longo prazo, essa inflação vai arrefecer a ponto de sentir alguma medida compensatória na economia real, no bolso do brasileiro que está ali recebendo esse auxílio. Talvez seja altamente ineficiente e muito mais prejudicial do que qualquer coisa do ponto de vista fiscal”, analisou.
*Especial para a Agência Nossa