Em apenas um ano de volta ao poder, o governo Lula dobrou o orçamento para cuidar de pessoas em situação de rua, retomou políticas assistenciais abandonadas, relançou o plano para catadores, e, entre as medidas previstas na lei que acaba de sancionar, criou condições para que os não mais invisíveis possam participar de processos seletivos e entrevistas de trabalho.

Mas ainda precisa percorrer um longo caminho para conseguir preencher as lacunas deixadas pelo sucateamento de políticas públicas para essa população, agravadas pela pandemia, reconhece o diretor do Departamento de Proteção Social Especial do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Regis Spindola.

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Para começar, o Brasil precisa quantificar esta população, que ainda possui mecanismos duvidosos de medição, baseados em cadastro de programas sociais (o que mascara dados de municípios que não fazem cadastros). Spindola prevê que a pesquisa do Censo nacional sobre a população em situação de rua deve ficar pronta entre o final de 2024 e o início de 2025, após fases de testes que começaram no final do ano passado na cidade de Niterói (RJ).

Spindola traz na bagagem experiência na Prefeitura de Belo Horizonte, a cidade, nas suas palavras, que mais cuida desta população e que inovou neste processo. Ele alerta para a tendência de aumento acelerado do número de idosos nas ruas. “Temos aí uma tendência de crescimento que se justifica, obviamente, por causa das vulnerabilidades sociais e econômicas, mas também da própria curva demográfica de crescimento”.

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O retrato atual, no entanto, é de uma população majoritariamente adulta, masculina e trabalhadora. 

“A gente vive um momento em que muitas pessoas veem a população em situação de rua como pessoas que não querem trabalhar ou que estão na rua porque querem, e a gente precisa quebrar isso”.

Justamente por ser maioria de trabalhadores, o governo sancionou em janeiro a lei que traz a política nacional de trabalho digno de cidadania para população em situação de rua. 

“Mas acho que ela vai muito para além do mercado de trabalho. Trata da dignidade desse trabalho. É fundamental, e isso é um diferencial dessa lei, porque ela também traz que as pessoas em situação de rua tenham, inclusive condições para participar de processo seletivos, para participar de entrevistas de trabalho, minimamente condições para que cheguem até essas etapas, por exemplo, de uma abertura de vagas, e a gente pode contribuir com isso enquanto assistência social, de ter ali acesso a direitos básicos que vão vir antes, inclusive, do próprio direito ao trabalho”.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista de Regis Spindola para a Agência Nossa.

O diretor de Proteção Social Especial da Secretaria Nacional de Assistência Social, Régis Spíndola, durante lançamento da segunda edição da pesquisa “Matriz de Monitoramento de Deslocamento (DTM) Nacional sobre a População Indígena do Fluxo Migratório Venezuelano no Brasil” / Foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil)

Agência Nossa: Enquanto a população em situação de rua cresceu expressivamente nos últimos anos, os repasses para assistência social do governo federal para os municípios despencou. No governo Lula isso muda?

Regis Spindola: Em 2023, com todo um esforço que nós tivemos no âmbito da assistência social de recomposição de orçamento, a gente conseguiu garantir repasses aos municípios na ordem de R$ 98,5 milhões. A gente praticamente dobrou esses valores que foram repassados no ano anterior… É óbvio que sabemos que esses recursos ainda precisam ser ampliados, cotidianamente, mas o desafio agora é manter.

Eles foram repassados proporcionalmente de acordo com aquilo que a gente chama na assistência de pactuação, então é o valor já estava pactuado, que não estavam sendo cumpridos pelo Governo Federal na última gestão e que foram retomados enquanto compromisso da assistência social, então não teve uma redistribuição ou um recálculo dos valores, os valores permaneceram a partir dos critérios que foram pactuados em anos anteriores.

Então todos os municípios receberam mais?

Todos eles receberam mais. O que a gente tem são municípios que implantaram novos serviços e não receberam por esses novos serviços implantados, porque eles não tinham sido pactuados previamente nas instâncias do SUAS.

Para 2024, quais são as perspectivas tanto orçamentária, quanto de ações? 

Para 2024, a gente tem um desafio que é manter aquilo que a gente já está implementando em termos de manutenção e de financiamento para os estados e municípios, um compromisso também do nosso governo, que está fazendo esses repasses de forma regular e cumprindo com o que foi compactuado com os estados e municípios.

Em termos de ampliação dos serviços e das estratégias de proteção (…) pretendemos ampliar o acesso, sobretudo das pessoas em situação de rua aos programas sociais do Governo Federal, o Programa Bolsa Família; temos também previsto a retomada de financiamento das ações estratégicas de erradicação do trabalho infantil, que a gente sabe que acontece prioritariamente na ruas, e desde 2019 que não se repassa recursos aos municípios para combate ao trabalho infantil. A gente já tem também uma previsão orçamentária para retomar essas ações, porque a gente sabe que é fundamental cuidar das crianças e os adolescentes que fazem da rua um espaço de moradia, mas também de sobrevivência. 

Pretendemos também neste ano fortalecer também as instâncias de controle social e de participação dos estados e municípios na política, além das demais ações que estão previstas no plano Rua Visíveis, que não são apenas da assistência social, mas que trazem também ali ampliações importantes tanto para a saúde, tanto para os direitos humanos, tanto para a educação quanto no que tange à proteção da população em situação de rua.

Levantamento da Agência Nossa mostra que entre os municípios com as maiores populações de rua, o Rio é o que menos atende nos Centro POPs, com uma média de menos de um atendimento por pessoa em situação de rua, muito abaixo dos demais. O governo federal acompanha a destinação dos repasses para pessoas em situação de rua?

Primeiro, o Governo Federal, ao identificar ou ao tomar conhecimento pelas nossas pesquisas, pelas nossas análises, transferência de dados, ou seja, por informações igual a que você está trazendo a partir de um estudo que foi feito por vocês de cruzamento de dados, é óbvio que a gente estabelece tanto com o municípios quanto com estados um cronograma de apoio técnico, inclusive para entender o porquê disso, se é um erro de lançamento de informação, se é ausência de informação, se é erro metodológico ou se é, de fato, a falta do atendimento.

A partir desse cruzamento, a gente também faz com o município envolvido um plano de ação para tentar compreender e melhorar aquele serviço. Com respeito a fiscalização, a nossa fiscalização tem muito o caráter de apoio, de melhorar esse indicador e de trazer isso para um outro patamar. A fiscalização enquanto não utilização de um recurso de forma correta e tal, isso está nas distâncias que são específicas de controle.

Anormalidades no uso de verbas são levadas pelo MDS a outras instâncias?

Sim,  às vezes os próprios tribunais nos pedem a informação (…) em se identificado algum tipo de regularidade,  é levado, obviamente, às instâncias competentes para fazer essa apuração.

Mas antes de todo esse processo também é importante vocês compreenderem que o primeiro guardião enquanto a gente fala dessa fiscalização do município é o Conselho Municipal de Assistência Social. O Conselho Municipal tem que fazer ordinariamente todo ano a aprovação da prestação de contas daquele município. O Governo Federal só vai repassar recursos ao município. A partir dessa prestação de contas aprovada pelo Conselho.

Uma lacuna que percebemos é a falta de clínica de reabilitação para mulheres. O governo pensa em mais políticas para mulheres?

No âmbito da assistência, a gente busca fortalecer e ampliar o número de equipes e garantir um orçamento para que essas unidades possam ser ampliadas e quando a gente pega no público específico de mulheres, não é uma justificativa, nem explicação, mas é uma hipótese, como historicamente o número de homens é quase de 90% e o de mulheres 10% da população em situação de rua, a gente tem uma própria arquitetura das unidades que atendem a população em situação de rua muito masculina, e isso se reflete também numa ausência de vagas, muitas vezes para as mulheres em diferentes situações, incluindo aí as situações de saúde, como foi citado, que é uma discussão de gênero na política pública que se faz fundamental.

Os testes para o Censo já começaram?

Está em andamento, para fazer um censo a gente precisa primeiro de etapas, né? Etapas pré-testes para testar mesmo a metodologia, testar se o formato. A gente tem que ter toda uma outra metodologia porque esse não é um censo residencial, ele é um censo das pessoas que estão em situação de rua, então a metodologia usada para o censo demográfico residencial  é diferente …

Nossa primeira etapa pré-teste já foi realizada, nos dias 7 e 8 de dezembro em Niterói. A equipe do IBGE, junto com a equipe do Ministério, estava em Niterói e fizeram toda essa essa etapa pré-teste com a contagem da população de rua no município.

Quantos são em Niterói, a primeira cidade teste?

O relatório final da etapa pré-teste deve ser divulgado em março. Depois dessa etapa pré-teste, ampliaremos nossos municípios de teste. Depois, a gente vai fazer uma etapa de teste, que está prevista para acontecer até o mês de outubro com um município de cada uma das cinco regiões. Entre final de 2024 o início de 2025, de fato deveremos ter uma pesquisa nacional.

Isso tudo  firmado com o IBGE, com a participação também do IPEA e dos ministérios para que a gente tenha de fato censo nacional, porque a gente acredita que o censo nacional é que vai nos apresentar de fato o número de pessoas que estão em situação de rua, diferente do cadastro, que nos apresenta o número de pessoas que estão já com algum tipo de proteção cadastrado na assistência social.

Se a gente faz uma comparação, o censo é uma fotografia, o dado do CadÚnico é um vídeo, porque ele apresenta um período, e o censo é fotografia daquele momento.

Por que Niterói foi escolhida para ser o primeiro município de teste do censo da população em situação de rua?

Aí foi critério bem do IBGE mesmo, não é a primeira vez que Niterói é escolhida enquanto um município que tem uma boa representatividade dos demais, então tem questão por causa do tamanho. tem uma boa representação de um conjunto.

Há uma nítida falta de coordenação entre as políticas que envolvem PSR. Idosos por exemplo ficando sem abrigo porque cabe à política nacional do idoso e não à assistência social; procedimentos médicos que precisam do envolvimento das pastas de saúde, e capacitação que passa pela pasta do trabalho. O governo federal trabalha para melhorar isso?

Sim. Primeiro, a própria Política Nacional da População de Rua já prevê que tanto a União quanto estados e municípios deveriam ter um comitê intersetorial de política para população de rua. No caso do Governo Federal, esse comitê existia, foi paralisado no último governo e foi retomado em outubro de 2023, no ano passado. Então a nossa principal resposta para garantir essa integração entre as políticas públicas é a retomada do comitê intersetorial de acompanhamento da política da população de rua, que a gente chama de CIAMP Rua. Ele tem a participação dos diferentes Ministérios, inclusive do Planejamento e da Fazenda, e da população e da sociedade civil, que foi feita a partir de uma seleção, um edital, onde o Movimento Nacional Pastoral, universidades que o trabalho diretamente com a temática, também participaram para compor este comitê. 

É função do comitê a nível nacional, mas isso também replica a nível estadual e a nível municipal, justamente garantir essa interseccionalidade, porque a gente sabe que embora  a intersetorialidade seja princípio das políticas públicas, ela é difícil de ser resguardada no sentido de que a gente ainda trabalha numa lógica muito de caixinhas, né? A caixinha da assistência, a caixinha da saúde, a caixinha da segurança pública e que a gente precisa de fato de ter uma instância articuladora entre essas diferentes políticas públicas.

Percebemos mais pessoas idosas nas ruas…

Se a gente pega os dados de dois, três anos atrás, sobretudo os dados um pouquinho mais além, de quatro anos atrás, agora já pensando em pandemia, esse número era aproximadamente de 6%, agora a gente já está em 8% da população que está na rua com mais de 59 anos. Temos aí uma tendência também de crescimento que também se justifica, obviamente, por causa das vulnerabilidades sociais e econômicas, mas também da própria curva demográfica de crescimento.

O mesmo vale para as esferas locais…

É fundamental que estados e municípios também tenham o seu comitê estadual e municipal, porque vai ser a instância deliberativa no âmbito municipal que vai ter condições de, inclusive, questionar o gestor de uma determinada pasta porquê da diminuição, por exemplo, do número de atendimentos; porquê da diminuição da oferta para a população de rua de determinado serviços.

Os comitês, seja a nível nacional, estadual ou municipal, são guardiões da política pública de atendimento à população de rua, e eles têm por força de decreto, por força da política nacional, a competência mesmo de acompanhar tanto a formulação e a execução da política pública referente a população em situação de rua. Então acho que um dos questionamentos a serem feitos a qualquer município que possa estar apresentando algum tipo de dado inconsistente em relação à população de rua é se o CIAMP está funcionando, e muitas vezes a gente percebe que os municípios que apresentam algum indicador negativo em relação ao atendimento da população em situação de rua em uma das áreas temáticas ou em mais de uma delas não tem o seu mecanismo de formulação de acompanhamento da política pública para a população em situação de rua, que é o CIAMP, em funcionamento. 

O governo federal sancionou agora no começo do ano lei para pessoas em situação de rua que promove políticas de capacitação e de emprego, pode detalhar um pouco mais?

A Lei 14.821  traz a política nacional de trabalho digno de cidadania para população em situação de rua, traz diferentes competências para as pastas envolvidas estarem mobilizando os seus recursos no que se refere a inserção da população em situação de rua no mercado de trabalho, mas acho que ela vai muito para além do mercado de trabalho. Trata da dignidade desse trabalho, porque conhecendo inclusive que como os dados do CadÚnico já apontam, essas pessoas estão num trabalho muitas vezes informal, mas elas já utilizam de algum tipo de instrumento para garantir a sua subsistência e em nome da assistência isso vincula-se muito com um programa de assistência social chamado Ruas Trabalham. 

A lei prevê inclusive essa competência para a assistência social de estar fomentando e garantindo essa inserção no mercado de trabalho, e a gente tem feito uma leitura muito a partir desse programa Ruas Trabalham, que também foi um programa que na última gestão foi suspenso, tiveram poucos investimentos nele e que a gente está nesse processo de retomada, retomada das orientações técnicas, retomada das suas formulações para garantir mesmo inserção.

É fundamental, e isso é um diferencial dessa lei, porque ela também traz que as pessoas em situação de rua tenham, inclusive condições para participar de processo seletivos, para participar de entrevistas de trabalho, minimamente condições para que cheguem até essas etapas, por exemplo, de uma abertura de vagas, e a gente pode contribuir com isso enquanto assistência social, de ter ali acesso a direitos básicos que vão vir antes, inclusive, do próprio direito ao trabalho. 

Pesquisa do Ipea mostrou que a maioria absoluta de pessoas em situação de rua é de trabalhadores, mas a população desconhece essa informação e muito pelo contrário, avaliam que estão na rua porque não querem trabalhar…

A gente vive um momento em que muitas pessoas veem a população em situação de rua como pessoas que não querem trabalhar ou que estão na rua porque querem, e a gente precisa quebrar isso.

Voltando sobre a nova lei, precisamos observar que não se trata só de trabalho, mas trabalho digno, e que isso para gente traz um ponto que nos é muito caro, que é de um resgate de dignidade de um sujeito, então esse olhar, que muitas das vezes é contaminado por essa aporofobia social que a gente vive, ela deve ser de fato a partir de um interesse daquele usuário, a partir de um trabalho com ele, inclusive para ele compreender da importância do trabalho na vida de uma pessoa, mas sem desconsiderar que ele já trabalha também, né? A rua é um espaço de trabalho, na maioria das vezes informal, mas que é um espaço onde temos pessoas em situação de rua que são trabalhadores. Todas as pesquisas e todos os dados do Cadastro Único nos indicam para isso.

Uma coisa que chama muita atenção, que me entristece na verdade, é como é mal remunerado o serviço de catador, que é tão importante. Por que desvalorizam tanto o trabalho do catador?

Acho que é trazer mesmo uma uma informação, a nível de Presidência da República, existe uma condução de um plano nacional para os catadores, na perspectiva mesmo de valorização do trabalho do catador. No último dia 22 de dezembro houve um evento aqui em Brasília com a participação dos catadores, que são um grande número da população de rua, mas não apenas, a gente tem a situação de rua muito forte também junto com os catadores, justamente para traçar diretrizes de reconhecimento e de planejamento de ações específicas de proteção aos catadores, então a Presidência da República já está muito antenada e já trata essa situação como prioridade de governo, não é nenhum ministério…

Falta política também de reabilitação… 

Acho que primeiro a gente já vem desenvolvendo aqui do Ministério uma política de cuidado, essa política de cuidado trabalha diferentes políticas públicas e pensando muito na pessoa a ser cuidada e também nas sobrecargas de cuidado que algumas pessoas têm. Digo isso porque a gente já vem discutindo a parte da política de cuidados e a partir também de outras situações a fundamental intersecção entre saúde e assistência social, as questões ali, quando a gente pensa em fenômenos como o álcool e outras drogas, elas dizem sim sobre degradamento da saúde, mas de agravamentos sociais, tanto na sua origem, quanto na sua respostas. 

É fundamental, e a gente vem discutindo isso, a implementação de modelos mais híbridos de cuidado  e por modelos híbridos de cuidados a gente pretende chegar de fato a unidades que tenham ali profissionais de assistência social e profissionais de saúde, ofertando de fato proteção em assistência, em saúde e em assistência social. 

Acho que a gente tem um desafio grande que é do fortalecimento das políticas públicas de uma forma geral, então nas redes das RAPS, que são as Redes de Atenção Psicossocial, vinculadas à saúde, que tem o atendimento nos CAPS e nas outras unidades de referência que a saúde tem para atendimento para álcool e outras drogas.

Colaborou Francielly Barbosa

Texto atualizado e corrigido com o cargo de Regis Spindola em 02/02/2024.